quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Uma Música de Treva e Sangue - Capítulo II: Vampiros mexicanos, machetes e pentagramas


A noite apresenta-se em uma luia-cheia chamativa e luminosa, dando um aspecto de lusco-fusco às vielas repletas de gatos esguios e pedintes mal cheirosos. O lugar de escolha dessa vez é o Vampyr Burgess, uma espécie de restaurante de quinta para os draculinos suburbanos. Fidelis, Ramón e Glaudino (os irmãos Ventura) e eu somos os ingredientes dessa peregrinação social... ah, claro... e o bastardo do Norman... um vampiro ignorante, fraco e barulhento, desprezado por todos que faço questão de guardar o nome. O encontro de hoje foi planejado para matá-lo. Estamos todos sentados numa mesa próxima a um aquário de águas púrpuras e curiosos peixes híbridos, muito acomodados ao tédio e a falta de assunto, nossos copos raramente cheios. Após o terceiro coquetel de substâncias lúgubres, posso jurar que sou o único a recordar o porquê de estarmos ali – e a perceber o incômodo ranger das cadeiras.



– Amigos, que tal um brinde? – proponho que sou só sorrisos. Sinto que se não tomar uma iniciativa, cada um pegará uma vadia barata das mesas de pano-de-prato e deixará o programa com Norman para um futuro pouco certo.

– A quê? – todos perguntam com voz de monotonia – é o que tento me convencer, pois apenas Ramón o faz.

– Cada um com sua ode de preferência, nada mais justo. Que acham?

– Esplêndido, se levarmos em conta o padrão dessa noite – resmunga Fidelis, cuspindo as palavras por cima dos ombros, os olhos negros desprezando a figura patética de Norman – vez ou outra o fazendo com os mexicanos também, pois é um idiota.

Todos levantamos nossas copos quase vazios, o cristal de tolo ressoando um tilintar muito anêmico. Norman é o primeiro a se pronunciar, como esperado – é o mais bêbado e desorientado, pois providenciei isso e aquilo para essa sua condição:

– Um brindi... um brindi às muléris promíscuas... à ereçãum... proporcionada pela recém-sucçãum de sangui frescu e... e às noivas... ninfumaníacas! – estardalha aos respingos, derramando bebida pela toalha e suas roupas desgastadas, a voz irritante soando desagradavelmente alta.

– Norman, Norman! Você brinda a três regalias da vida – ou não-vida -, duas delas sendo indiretamente a mesma coisa... e espera que aceitemos isso com caras e bocas de mocinhas? – relanço um olhar insinuante para cada um dos presentes, obscuro por cima das olheiras, relembrando-os do real objetivo de estarmos aqui, tolerando o ar de nossa graça num lugar chulo, digno de ratos e eunucos.

Fidelis, sendo o mais astuto, capta o recado e prossegue com os dentes afiados da armadilha:

– Norman-Norman... e se, por infortuno acaso, um de nós brindar a dois temas, ou apenas um tema – veja só, que desconcertante - parecerá menos inspirado se comparado a seu trio de... paixões quase líricas? E não faria justiça, não mesmo, acrescentarmos elementos a mais para se brindar unicamente com o intuito de mantermos as aparências... não seria genuíno, tampouco nobre, de nossa parte – com uma breve pausa dramática, deixando uma expressão reflexiva no rosto encovado, ele então retoma, todo empoleirado em sua atuação – Creio... tratar-se de um tópico do qual todos concordamos, não? Não?

– Certamente – Ramón, brandindo os bigodes.

– D’acordo – Glaudino, penteando as costeletas com o canto dos dedos.

– All right – esse que vos fala.

– ... mas... a nãum-vida seria muitu insôôôssa... sem essa... coisiiitas... qui cupa tenhu eu qui os senhores... sãum... uns... sãum uns... merdinhas sem inspiraçãum??

Todos fingimos espanto e indignação – apesar de não ter certeza quanto aos mexicanos... sua troca de olhares e bocarras abertas revelam-se bastante genuínas; pois bem, parecem palermas o bastante para isso. Adianto-me, portanto, com o mate:

– Lamento, Norman. Há de entender, agora você foi longe demais. Palavras desmedidas provocam contragolpes desmedidos – e empalamento. Deveria pensar algumas vezes antes de expelir baboseiras sem respeito para bons cavalheiros como os de nossa estirpe.

– ah é... e o que voceis... voceis... 4? Pretendeeem... espeeerem, o qui é... ei, o que tãum fazeno?

Fidelis e eu seguramos Norman com firmeza pelos braços para imobilizá-lo - os mexicanos ficam com as pernas, triturando seus ossos –, atracando-o por cima da mesa como um porco prestes ao abate. Derramamos as garrafas e copos encardidos no processo, e o soalho de madeira sob nossos pés mancha-se de vinho antes que os gritos e protestos do paspalho encham o restaurante-taverna. Como de costume, atraímos alguns olhares receosos, logo reprimidos juntos dos cochichos, devorados pela horrível faceta de Fidelis, transfigurada em um demônio com chifres e presas às centenas.

– Ramón, Glaudino, procurem tirar algo de valioso dessa lição, levem e propaguem isso para o México. Vocês estão concentrados demais em burritos e guacamoles, deveriam se envergonhar – escarneia Fidelis, prepotente como um primogênito mimado; o desagrado dos Ventura transborda pelos olhos miúdos e pesados.

– Não acho uma boa ideia nos provocar, sibilador – o bigode grudado à costeleta de Ramón vibra sob seus dentes graúdos, suas rugas se acentuam. - Meu irmão e eu nos frustramos facilmente com demonstrações de desrespeito e, por consequência, nossas machetes poderiam errar o alvo...

–... arrancando-lhe a cabeça, por que não? Cada uma delas - Glaudino pressiona a virilha de Fidelis com sua machete, solidificando, assim, a ameaça. - Acontece. Já vi acontecer antes, muitas vezes.

– Meus senhores, meus senhores! Não vamos perder a concentração! Há em nossa mesa um assunto de pessoal importância para tratarmos no momento – finco um garfo vagabundo no olho de Norman, a haste entortando com a força do golpe. Os gritos de dor do traste parecem trazer-lhes de volta mais eficientemente do que minha advertência – os mexicanos; Fidelis permanece catatônico com sua careta crispada, encarando de Ramón e Glaudino com aquela sua cara odiosa de maníaco.

– Paarem! PAREEEM! O qui foi qui fis a voceis??! – Norman chora de ecoar através de uma sala cheia de móveis e vampiros (ou coisa que o valha), mas apenas pelo olho poupado – o engarfado escorre vermelho apenas.

– Ser um parvo, esse foi seu erro! – os mexicanos rasgam a carne do bastardo como grão-açougueiros, uma cena horrenda. Dou socos e chutes devastadores em sua cabeça, num ato piedoso, visando diminuir sua capacidade cerebral de identificar dores.

– Não vou tolerar ameaças desses chupa-cabras selvagens! – manifesta-se Fidelis, até pouco uma estátua. Traiçoeiro, ele solta o braço de Norman que estava a prender e, estando próximo de Glaudino, a garra exposta desse arranca-lhe a orelha esquerda brutalmente - uma autodefesa instintiva ao extremo, difícil de se esquivar para um desavisado. Com a banal surpresa de ver o irmão mutilado, Ramón desfere uma das machetadas com particular barbárie, essa atravessando a madeira do altar de execução improvisado, prendendo-se do outro lado. Com um puxão mal calculado, o Ventura arranca 1/3 da mesa junto à ponta da lâmina, o que sobrou dela vindo a desabar em seguida com o corpo esquartejado e em maltrapilhos.

– Lá fora! Eu e você, hijo de puta! – Ramón empurra Fidelis com força, que apenas sorri enviesado, dando um passo para trás. Glaudino urra uma dezena de palavrões na língua de sua terra, procurando a orelha pelo chão manchado de sangue e coquetel de segunda. Os três estão no frenesi: as presas-câninas expostas, os olhos funestos desprovidos de íris – contas pálidas e sem vida - e os tendões enrijecidos para estraçalhar e atravessar. Assisto a tudo com a face enterrada entre as mãos, deixando maldições inaudíveis escaparem entre os dedos; minha têmpora dilata, e sinto o sangue ingerido mais cedo ferver.

– Fidelis... você é... inacreditável de tão merda... - confesso, indiferente; um turbilhão assassino implora por sair de dentro de mim.

– O quê? Esses comedores de churros ameaçam me capar, e eu sou o merda por defender meus culhões? Foda-se você bem nas tripas, necromante!

– Ah, eu achei! Eu achei! – comemora Glaudino, tendo encontrado finalmente sua orelha decepada.

– O quê? Meu pé de ferro, chupa-pau?

Fidelis esmaga a mão de Glaudino com um pisão violento, a pressão exercida afundando sua perna e o braço do outro no antigo chão de madeira do Vampyr Burgess.

– CABROOOOON!!!!! – o mexicano tenta amputar a perna do odiado Fidelis com uma machetada feroz, mas, para sua frustração abissal, ele se esquiva com maestria ao saltar no preciso momento da ofensiva. Com isso, também, evita a lâmina de Ramón, que corta miseravelmente o ar onde, há pouco, estava o pescoço longo e fino de seu alvo; duas machetadas numa pululada só.

– Lá fora, você disse? Lá fora vou matar você e seu irmão de merda, então. – Fidelis pousa exatamente atrás de Ramón, cochichando ao pé de seu ouvido seboso. Com uma escarrada de desprezo, ele desfere um poderoso chute no traseiro do vampiro mexicano, o corpo desse sendo arremessado a bons longos metros, chocando-se contra a porta de entrada, encontrando a saída do Vampyr Burgess – o mundo dos homens.

– Fidelis, está louco? Um duelo de vampiros já chama muita atenção em circunstâncias normais... imagine se você se engalfinhar com esses dois insanos em plena madrugada! Vocês vão acordar os humanos, espantar os mendigos; vão chamar a atenção para vocês, como não poderia ser diferente, e, por consequência, o Conselho irá se envolver. Apagar memórias, sabe o quanto eles detestam isso? É claro que sabe.

– Você se preocupa muito, transmorfo. Um duelo de vampiros é chamativo, sim. Mas e quanto a uma execução, rápida e surdina? Não pense que é o único a acumular segredos ao longo dos séculos empoeirados... – Fidelis puxa Glaudino pelo rabo de cavalo, enterrando sua cara cavalar contra o soalho de madeira. Tomando a machete do irmão Ventura, ele deixa uma trilha de sangue e pedaços de pele conforme cede centímetro por centímetro do caminho até a porta de saída, esfolando o rosto do adversário até o osso, as farpas se enterrando fundo nos olhos e na carne viva.

– Executar?? Perdeu a porra juízo? O pai deles tem um cartel bélico e destrutivo! Não vai achar tão engraçado zombar de churros e costeletas quando 1000 machetes banhadas em feitiços desconhecidos, dos quais não vai poder se defender, atravessarem-lhe o rabo! – a ideia de Fidelis ser destruído pelas mãos de uma linhagem bárbara – e inferior - de vampiros me causa asco; sua ruína tem de vir pelas minhas mãos, no momento certo, sob as circunstâncias que me convirem.

– Senhorita, senhorita! – avisto uma garçonete toda gótica e borrada a minha frente, recolhendo pratos com palitos e beliscando o pedaço de alguma coisa, provavelmente uma asa morcego. - Poderia dar um jeito nisso? – aponto para o que sobrou de Norman, murmúrios e partes moídas.

– Meu senhor? - em outra ocasião, eu a curraria até sua maquiagem borrar-se, no mínimo, em dobro; fica pra próxima, é o que me passa pela cabeça.

– Aquele ancião, o piromante, pode limpar essa bagunça rapidamente – indico um velhote encapuzado e de barba rala por fazer num dos cantos da taverna, bebericando um composto negro que lhe pustula a pele. - Sei que vocês não têm estrutura o bastante para cuidar disso, uma pena. Mas o piromante pode resolver! Ele me deve favores, simples. Só apresentar-lhe esse cartão. Agora me despeço, já me adiei em demasia... muito grato! – e vou, como se atrasado para algo de suma urgência - um bacanal multiracial, ou coisas do gênero.

Corro para a entrada, a saída, seguindo o rastro grotesco deixado por Fidelis. Pisando em terreno humano, o ar frio da madrugada tentando fustigar minha pele morta e a poluição invadindo meus pulmões escuros, me deparo com o inesperado: apenas Fidelis, o próprio, encontra-se do lado de fora, segurando as duas machetes dos mexicanos, banhadas em sangue e pingando - uma, duas, três, várias vezes. De frente ao salão em ruínas que serve de fachada para camuflar o portal anexo do Vampyr Burgess, ele aparenta estar extasiado.

– Fidelis... onde estão... os irmãos Ventura?

Sob as paredes de tijolo e cimento ao seu lado, dois mortiços pentagramas ornamentados por inscrições rebuscadas e símbolos pagãos, um de cada lado, fazem-se visíveis em vermelho-sangue-fresco, como se sorvessem a luz do luar. Eu o questiono, mas bem sei a resposta.

– Como diria Carlota Joaquina de Bourbon... eu os mandei para O Quinto dos Infernos...

Fidelis está com um sorriso brando, como se por efeito de cogumelos ou chá de druida. O ego do maldito está tão inflado que o seu ato suicida é interpretado por ele como uma passagem de auto realização, o primeiro lance de degraus da ascensão de um conquistador – ou, simplesmente, o passatempo de um louco. Suspiro; o que fazer quando a brincadeira de mal gosto lhe perfura com centenas de agulhas aquilo que se entende por alma? Limito-me a sentar no banco de praça enferrujado à nossa sombra, e acendo um cigarro do meu maço favorito, perdido entre meus inúmeros bolsos. Baforo a fumaça escarlate do fumo, desenhando a silhueta de uma caveira neblinada sob o céu sem estrelas.

– Carlota... soube que você a pegou de jeito. Perda de aposta, suponho.

– É o tipo de coisa da qual não se nutre orgulho... nas duas primeiras décadas.

– Bem... que se foda.

Trago o meu escapismo químico até o filtro, onde, para os cigarros de vampiros, é que a diversão realmente começa.

– Você me envolveu nessa merda, seu filho da puta.

Fidelis gargalha para o alto, como se tivesse se recordado de algo muito negro. Ele coça a testa, o dedo ensanguentado deixando uma linha vermelha no rosto.

– Não, necromante... isso é o que você diz para se convencer de que tem o controle das rédeas; um refúgio além de suas trevas senis. A imortalidade é um prato frio, onde vinganças tornam-se labaredas. Evocar a Lei da Casualidade é essencial para não sucumbirmos à banalização do nosso próprio existir.

O filtro está em seu âmago, e fogos de artifício pipocam em diversos tons de arco-íris em minha mente.

– ... filosofe, Fidelis. Filosofe enquanto puder. Mas eu o aconselharia em centrar os seus últimos proveitos em orgias e sodomias, não filosofia.

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