Capítulo
18 – Um Livro Empoeirado
A noite era fria e
sombria, uma chuva pesada caia sobre o grupo, empata ferros, é assim que ele a chama, pensou Nogard, lembrando-se
de como Merlon se referia a chuva em Ferro Forte. Uma neblina persistente
seguia caminho à frente deles, nada se via a mais de cinco metros, mas Jih’ndo
havia dito para Nogard que a Cidade Sede de Angur não estava muito longe. A
Primeira Cidade de Andor, onde no passado, em sua alta Torre-de-Dragão,
Lutheraxes ,o Grande Dragão Negro, passava seus dias, vigilante e preocupado
com os homens da cidade, esses dias não mais faziam parte da cidade, nem essas
lembranças.
Quando Dorean
derrotou os Banedúim, no fim da Era das Conquistas Jeh’khgari, ele ordenou que
fosse construído ali um monumento, para lembrarem de sua glória e seu feito, um
monumento tão belo e tão complexo que jamais poderia ser superado, então
durante anos homens, mulheres e crianças trabalharam na construção do
monumento. Este monumento é a Cidade de Angur.
A Cidade de Angur é
uma única peça, todas as casas estão interligadas, todas as ruas, todas as
praças, todas as lojas, os quartéis, os estábulos e o Grande Castelo Branco são
uma única peça, como uma enorme montanha, cheia de vida e histórias. Ali
residem as últimas espadas mágicas de Andor, guardadas e confiscadas por todos
os Reis que a governaram até hoje, desde os tempos de Dorean. Também é ali que
fica a Torre-dos-Maégis, a única construção que não faz parte integral da
cidade, foi erguida com magia pelo próprio Tartos, aquele que mudou de lado
durante a Batalha de Belindor. Tartos revelou os segredos das magias aos
Jeh’khgari, condenando assim todo o seu povo, os Banedúim, assim ganhando o
grau de Alto-Maégi, e assim ele foi conhecido durante muitos anos, até que
Dorean começou a ser dominado por Adarom, o Mau Original, e até que as
lembranças e o remorso foram mais fortes do que sua mente brilhante e
inteligente, e Tartos debandou, fugiu para nunca mais voltar.
A cidade agora era
governada por Arelon, Rei de Andor, e seu conselheiro, Edaliom, atual
Alto-Maégi da cidade.
Quando a neblina se
dissipou parcialmente, Nogard pode ver a cidade. Mesmo durante a noite e com
muita chuva caindo, a cidade era enorme aos olhos de quem a via.
- É enorme,
simplesmente gigantesca, quantas pessoas vivem ai? – perguntou o garoto a
Jih’ndo.
- Aproximadamente
cinquenta mil pessoas, mas nem todos são guerreiros, costuma-se dizer que Angur
possui trinta mil homens.
Arwen estava
boquiaberta.
- É praticamente um
exército indestrutível.
Guillar riu, com sua
risada de João-de-barro.
- Indestrutível
certamente ele não é – disse Guillar -, e nem foi no passado, quando o Falso
Rei marchou para o Norte, na Ultima Grande Guerra, ele dispunha de duzentas mil
feras, dentre essas se destacavam Bulks, Wargs e outros seres abomináveis,
criaturas tão impuras e asquerosas quanto o Sul. Vindas não se sabe de onde, e
criadas não se sabe como.
Nogard tinha olhos apenas
para a imensa massa cinzenta à sua frente, a cidade parecia uma montanha,
possuía duas pontes em arco, um virado para a esquerda e outro virado para a
direita, que se inclinavam para cima, e seus únicos dois portões ficavam no
meio da muralha, a trinta metros do solo. Mas Arwen não deixava passar um
comentário sequer.
- Então se o Rei do
Sul tinha tantos monstros, como os homens puderam defender o Reino?
Jih’ndo se adiantou.
- Disciplina, honra,
e fé, minha cara, os Jeh’khgari não perderiam essa terra, ela pertence à
Joh’han. – disse o bondoso Jih’ndo, inabalável em sua fé.
- Eu discordo. –
disse Guilar quase caindo do cavalo, como sempre, estava bêbado – Na minha
opinião, duas coisas salvaram Andor, a primeira é um velho que vocês conhecem
muito bem, e a segunda é sua espada cantante, herdeira de milhares de mãos
habilidosas e bondosas.
Lord Grum estava à
frente do grupo, e apesar do barulho da chuva ouviu o comentário de Guillar.
Lançou um olhar de desprezo ao Bardo e cuspiu de lado. Guilar apenas soluçou e
riu debilmente.
A alguns metros da
cidade Nogard pôde ver claramente suas pontes, também faziam parte da peça
única que era a cidade, duas massas de rocha em curva que se levantavam aos
poucos, os portões da cidade estavam muitos metros acima, na muralha, eles
subiram vagarosamente a ponte. Ao chegarem nos portões, Nogard ficou sabendo
que do outro lado da muralha outras duas pontes desciam, deve ser extremamente difícil invadir Angur, concluiu o garoto.
Nogard nunca tinha
visto um Maégi em sua vida e nunca ouviu falar de alguém que conhecesse um, mas
ele estava ali, do outro lado do portão, os esperando com um sorriso terno no
rosto. Era um homem velho, que aparentava ter uns oitenta anos, tinha uma longa
capa branca, que lhe cobria inteiro, dos ombros aos pés, trazia um cajado em
uma das mãos e possuía um enorme chapeu azulado, suas sobrancelhas eram mais
grossas e mais densas que as de Merlon, seu nariz era volumoso, grande e
adunco, possuía longos cabelos e uma longa barba, ambos eram azulados, e era
alto, alto como Merlon, mas não parecia ser forte o bastante para lutar com
espadas. Nogard não sabia, mas aquele homem não precisava de espadas, pois ele
era um Maégi e a magia era sua arma.
- Abram o portão
oeste! – disse o Maégi, sua voz era grave e obstinada.
Os portões se
abriram e eles entraram. O Maégi reconheceu o cavalo de Nogard e sorriu.
- Vejo que monta um
Gravas, meu jovem, é preciso ter um bom espírito para tal. Permita-me me
apresentar, sou Edaliom, Conselheiro do Rei, tirando o fato de que Arelon nunca
me escuta e nunca faz o que quero, também sou Alto-Maégi da Torre, lá todos me
escutam e fazem tudo o que eu quero, tremenda chatice, faltam aprendizes
espirituosos na Primeira Cidade. – Nogard e Arwen estavam tão adimirados pela
imagem de Edaliom que não conseguiram retribuir a cortesia e dizer seus nomes.
Edaliom voltou-se para Jih’ndo – Senhor Jih’ndo, seja bem vindo à cidade.
Jih’ndo acenou com
graça em seu cavalo.
- Muito obrigado,
Senhor Edaliom.
Agora Edaliom olhava
para Grum.
- Lorde. – disse
educadamente Edaliom, e acenou com a cabeça.
Lorde Grum apenas
fez uma leve reverência, estava com um humor especialmente amargo naquela
noite.
Mas o sorrizo de
Edaliom não morreu, permaneceu cordial e educado.
- Por favor entrem,
sei que querem apenas reabastecer provisões, pois sei para onde vão, mas
permitam-me oferecer algum alimento e alguma coisa quente para beberem, a noite
esta particularmente fria e úmida esta noite.
Jih’ndo e Grum
concordaram, e eles deceram a ponte interna. Ao fundo a cidade se erguia, como
uma montanha de casas, com o Grande Castelo Branco em seu cume.
Aos pés da muralha,
na parte interna da cidade havia uma enorme torre de madeira, era alta e
volumosa, ora ela se inclinava para a direita, ora se inclinava para a
esquerda, como ela não cai? Essas
madeiras estão todas podres e ela não me parece nem um pouco estável,
pensou Arwen olhando para a torre.
- Não se preocupe,
minha jovem e corajosa Arwen Venderim, essa torre foi erguida com magia e é a
magia que a mantem de pé, ela não cairá. – disse Edaliom sorrindo.
Arwen e todos ali
não puderam deixar de estranhar o fato do velho saber o nome da garota.
E Edaliom também
respondeu a isso, sem ninguém fazer uma pergunta sequer.
- Um Maégi sabe de
muitas coisas, isso é verdade e é sabido, um Maégi pode adivinhar se irá chover
ou se irá receber visitas, e se essas visitas são desejadas ou não, isso é
verdade e é sabido, imaginem então o que um Alto-Maégi sabe. – disse o alto
homem, abrindo as portas duplas da torre – Por favor fiquem à vontade.
Os cavalos foram
deixados do lado de fora, e eles entraram, pingando da chuva.
Todos sentaram-se
nas mesas que ali estavam dispostas, Jih’ndo e seus homens, Grum e seus
guerreiros, Guillar e seu cantil, Arwen e Nogard. O lugar era claro, iluminado
por muitas lamparinas, era mais amplo visto por dentro que por fora, possuia
escadas em espiral ao longo das paredes e em cada piso havia livros nas
paredes, Edaliom explicou que haviam nove andares na torre, tirando o térreo, e
que em cada andar se aprendia uma arte diferente. Foi servido, por jovens
aprendizes, chá quente de ervas e queijo com pétalas de uma flor comestivel,
que Edaliom não quis contar qual era. A todo momento Maégis aprendizes andavam
de um lado para outro da torre, uns vestiam túnicas e capas verdes, outros
azuis, outros amarelos e muitas outras cores, o Alto-Maégi contou que cada cor
representava o nivel de aprendizado de um aprendiz.
Quando todos se
alimentaram Jih’ndo e Grum se levantaram para ir até a cidade comprar
provisões, deixando Nogard, Arwen e Guillar aos cuidados da Torre-dos-Maégis.
- Acho que esta na
hora de uma lição – disse Guillar, e se pôs de pé -, então devo ir lá fora,
lições não são minhas atividades preferidas, com licença senhores. - e saiu, cambaleando e tropeçando em livros e
aprendizes.
Edaliom olhou para
as crianças com seus olhos azuis, suas sobrancelhas eram densas e saltavam para
fora da aba do chapéu, estudou as crianças por um momento e então sorriu.
- Nogard, Arwen,
tenho algo que irão gostar de ver, venham comigo. – e eles caminharam até os
fundos do andar térreo da torre, ali havia uma pequena porta, onde havia uma
orelha de madeira entalhada, Edaliom se aproximou da porta, encostou seus lábios
na orelha e cochichou algo, no mesmo instante a porta se abriu, com um som
muito alto – sentem-se, eu volto em um instante, e saiu.
A sala era pequena,
também tinha as paredes repletas de livros, um enorme lustre, repleto de velas
iluminava a sala, havia uma mesa com muitos papéis e uma grande poltrona de um
lado, com duas cadeiras simples de madeira do outro, ali estavam sentados
Nogard e Arwen, morrendo de medo e de curiosidade ao mesmo tempo, então o velho
voltou, trazia um pequeno livro empoeirado, um pequeno frasco brilhante e uma
rosa de vidro.
Ele se sentou, jogou
a pilha de papéis no chão, e pôs o livro, o frasco e a rosa na mesa.
- Em primeiro lugar,
não sou eu quem lhes dá esses presentes, estavam aqui para serem entregues a
você, antes mesmo de vocês nascerem, portanto se não gostarem não reclamem a
mim, pois nada poderei fazer, entendido? – perguntou o Maégi.
As crianças
engoliram seco e acenaram positivamente.
- Pois bem, em
primeiro lugar, Arwen Venderim da antiga Bolkur, entrego-lhe a Rosa de
Erodillis. – e estendeu a rosa de vidro para a garota – Vamos, pegue é sua. –
Arwen pegou a rosa com mãos trêmulas, cheia de medo de quebra-la – Não se
preocupe, ela é inquebrável, minha jovem. Pertenceu à Erodillis, uma jovem
Banedúim que deu sua vida em nome do amor, foi Erodillis quem acendeu uma chama
no coração de um guerreiro a muito não visto, um Banedúim que jurou proteger as
terras de seu povo da invasão Jeh’khgari, guarde essa rosa como seu coração,
pois ela poderá mudar o destino de muitos.
- Obrigado. –
agradeceu a garota, mordendo o lábio com receio de quebrar o presente tão
valioso.
Arwen não podia
pensar em mais nada além do que disse.
- Para Nogard, o
garoto sem sobrenome, eu entrego, em primeiro lugar, o último frasco de Prata-Sentimental,
um metal líquido muito raro e mágico, da antiga Maégi Banedúim, Melera a
Contente, nesse metal você poderá colocar todos os seus sentimentos e produzir
anéis, correntes e braceletes para todos os seus entes queridos. – e estendeu o
frasco para Nogard, o garoto pegou e agradeceu com um aceno muito sincero – Em
ultimo lugar, porém não menos importante, eu entrego à Nogard, um livro
empoeirado. – e estendeu o livro para Nogard.
Nogard pegou o
livro, era um livro comum de poucas páginas, tinha uma capa vermelha e estava
muito empoeirado, o garoto passou a mão sobre a capa, afim de remover a poeira
e descobriu uma figura.
- Uma lança fincada
na lua? – perguntou o garoto sem perceber.
Edaliom juntou as
mãos sob o queixo e apoiou os cotovelos na mesa.
- Este é o símbolo
de Jaoh’ndar, e este é o seu diário, leia-o Nogard, e aprenda sobre coisas do
passado, coisas que serão importantes para você no futuro. – Nogard não sabia o
que dizer, nem mesmo um obrigado lhe vinha aos lábios, Edaliom entendeu
rapidamente – Não precisa agradecer nem ficar assustado, ele é seu e estava
aqui para ser entregue a você, muitas coisas ainda acontecerão Nogard, e você
fará parte de muitas delas, direta ou indiretamente, este diário o ajudará a
entende-las melhor, mas é importante que você o mantenha em segredo, ele é de
conhecimento de poucos e assim deve permanecer, agora vamos, ja é hora de
partir.
E eles saíram da
sala, no mesmo momento em que Jih’ndo, Guillar e Lorde Grum entravam na torre,
o belo Jeh’khgari os olhou com desconfiança mas apenas riu com o canto dos
lábios, Jih’ndo gostava de saber das coisas, mas sabia que não se pode saber de
tudo.
- Vamos! – rugiu
Grum, sem nem ao menos agradecer a hospedagem.
- Sim, é hora –
disse Edaliom -, eu os acompanho.
- É muita gentilesa
sua, Senhor Alto-Maégi, eu agradeço em nome de todo nosso grupo, e
principalmente em nome de Lorde Grum, sua hospitalidade e educação. – disse
Jih’ndo, sendo cortês e provocando Grum ao mesmo tempo.
Eles subiram a ponte
interna novamente, rumo ao portão, a chuva tinha parado de cair, todos saíram
com cavalos completamente carregados. Enquanto atravessavam o portão Edaliom
puxou a manga de Nogard, que estava em seu Arkas, seus cabelos estavam cada dia
mais compridos e ele ficava mais alto a cada dia.
- Eu achei muito
belo. – disse o Maégi.
Nogard não entendeu
o elogio.
- O que o Senhor
achou belo?
- O seu colar de
madeira, esse com a imagem de um Dragão.
Nogard congelou de
espanto, o colar, como pude ter esquecido
de retirar o colar, e como não percebi que estava com ele no pescoço?
Pensou o garoto, sentiu um frio na barriga tão intenso que quase caiu da sela.
Ele não falava de Dragões e não deixava ninguém ouvir suas preces noturnas, mas
o colar estava ali, desde o dia em que ele o perdera em frente à Taverna do
velho Lumber-meio-nariz, desde o dia em que Merlon o devolveu, no bosque.
- Me... Senh...
Digo...
- Não diga nada
filho, eu já o conhecia. – disse o velho, apoiando-se em seu cajado.
- O conhecia? –
perguntou Nogard.
O velho aproximou-se
de Arkas, era tão alto que não precisou de esforço para alcançar o ouvido de
Nogard.
- Fui eu quem o fez,
e fui eu quem lhe deu. – disse o velho. Nogard o encarou com olhos
esbugalhados, Edaliom sorriu e disse algo para Arkas em uma língua que Nogard
não conhecia, o cavalo começou a andar – Boa viagem meu jovem, e lembre-se,
estude o passado para entender o futuro. – e virou as costas, descendo
novamente para sua Torre-dos-Maégis.
Encontrou algum erro, tem críticas ou sugestões?
Reaja e comente!!
Este obra foi licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivados 3.0 Brasil.
Nenhum comentário:
Postar um comentário