sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Nove Dragões - A Lenda de Nogard

Capítulo 18 – Um Livro Empoeirado


   A noite era fria e sombria, uma chuva pesada caia sobre o grupo, empata ferros, é assim que ele a chama, pensou Nogard, lembrando-se de como Merlon se referia a chuva em Ferro Forte. Uma neblina persistente seguia caminho à frente deles, nada se via a mais de cinco metros, mas Jih’ndo havia dito para Nogard que a Cidade Sede de Angur não estava muito longe. A Primeira Cidade de Andor, onde no passado, em sua alta Torre-de-Dragão, Lutheraxes ,o Grande Dragão Negro, passava seus dias, vigilante e preocupado com os homens da cidade, esses dias não mais faziam parte da cidade, nem essas lembranças.
  Quando Dorean derrotou os Banedúim, no fim da Era das Conquistas Jeh’khgari, ele ordenou que fosse construído ali um monumento, para lembrarem de sua glória e seu feito, um monumento tão belo e tão complexo que jamais poderia ser superado, então durante anos homens, mulheres e crianças trabalharam na construção do monumento. Este monumento é a Cidade de Angur.
  A Cidade de Angur é uma única peça, todas as casas estão interligadas, todas as ruas, todas as praças, todas as lojas, os quartéis, os estábulos e o Grande Castelo Branco são uma única peça, como uma enorme montanha, cheia de vida e histórias. Ali residem as últimas espadas mágicas de Andor, guardadas e confiscadas por todos os Reis que a governaram até hoje, desde os tempos de Dorean. Também é ali que fica a Torre-dos-Maégis, a única construção que não faz parte integral da cidade, foi erguida com magia pelo próprio Tartos, aquele que mudou de lado durante a Batalha de Belindor. Tartos revelou os segredos das magias aos Jeh’khgari, condenando assim todo o seu povo, os Banedúim, assim ganhando o grau de Alto-Maégi, e assim ele foi conhecido durante muitos anos, até que Dorean começou a ser dominado por Adarom, o Mau Original, e até que as lembranças e o remorso foram mais fortes do que sua mente brilhante e inteligente, e Tartos debandou, fugiu para nunca mais voltar.
  A cidade agora era governada por Arelon, Rei de Andor, e seu conselheiro, Edaliom, atual Alto-Maégi da cidade.
  Quando a neblina se dissipou parcialmente, Nogard pode ver a cidade. Mesmo durante a noite e com muita chuva caindo, a cidade era enorme aos olhos de quem a via.
  - É enorme, simplesmente gigantesca, quantas pessoas vivem ai? – perguntou o garoto a Jih’ndo.
  - Aproximadamente cinquenta mil pessoas, mas nem todos são guerreiros, costuma-se dizer que Angur possui trinta mil homens.
  Arwen estava boquiaberta.

  - É praticamente um exército indestrutível.
  Guillar riu, com sua risada de João-de-barro.
  - Indestrutível certamente ele não é – disse Guillar -, e nem foi no passado, quando o Falso Rei marchou para o Norte, na Ultima Grande Guerra, ele dispunha de duzentas mil feras, dentre essas se destacavam Bulks, Wargs e outros seres abomináveis, criaturas tão impuras e asquerosas quanto o Sul. Vindas não se sabe de onde, e criadas não se sabe como.
  Nogard tinha olhos apenas para a imensa massa cinzenta à sua frente, a cidade parecia uma montanha, possuía duas pontes em arco, um virado para a esquerda e outro virado para a direita, que se inclinavam para cima, e seus únicos dois portões ficavam no meio da muralha, a trinta metros do solo. Mas Arwen não deixava passar um comentário sequer.
  - Então se o Rei do Sul tinha tantos monstros, como os homens puderam defender o Reino?
  Jih’ndo se adiantou.
  - Disciplina, honra, e fé, minha cara, os Jeh’khgari não perderiam essa terra, ela pertence à Joh’han. – disse o bondoso Jih’ndo, inabalável em sua fé.
  - Eu discordo. – disse Guilar quase caindo do cavalo, como sempre, estava bêbado – Na minha opinião, duas coisas salvaram Andor, a primeira é um velho que vocês conhecem muito bem, e a segunda é sua espada cantante, herdeira de milhares de mãos habilidosas e bondosas.
  Lord Grum estava à frente do grupo, e apesar do barulho da chuva ouviu o comentário de Guillar. Lançou um olhar de desprezo ao Bardo e cuspiu de lado. Guilar apenas soluçou e riu debilmente.
  A alguns metros da cidade Nogard pôde ver claramente suas pontes, também faziam parte da peça única que era a cidade, duas massas de rocha em curva que se levantavam aos poucos, os portões da cidade estavam muitos metros acima, na muralha, eles subiram vagarosamente a ponte. Ao chegarem nos portões, Nogard ficou sabendo que do outro lado da muralha outras duas pontes desciam, deve ser extremamente difícil invadir Angur, concluiu o garoto.
  Nogard nunca tinha visto um Maégi em sua vida e nunca ouviu falar de alguém que conhecesse um, mas ele estava ali, do outro lado do portão, os esperando com um sorriso terno no rosto. Era um homem velho, que aparentava ter uns oitenta anos, tinha uma longa capa branca, que lhe cobria inteiro, dos ombros aos pés, trazia um cajado em uma das mãos e possuía um enorme chapeu azulado, suas sobrancelhas eram mais grossas e mais densas que as de Merlon, seu nariz era volumoso, grande e adunco, possuía longos cabelos e uma longa barba, ambos eram azulados, e era alto, alto como Merlon, mas não parecia ser forte o bastante para lutar com espadas. Nogard não sabia, mas aquele homem não precisava de espadas, pois ele era um Maégi e a magia era sua arma.
  - Abram o portão oeste! – disse o Maégi, sua voz era grave e obstinada.
  Os portões se abriram e eles entraram. O Maégi reconheceu o cavalo de Nogard e sorriu.
  - Vejo que monta um Gravas, meu jovem, é preciso ter um bom espírito para tal. Permita-me me apresentar, sou Edaliom, Conselheiro do Rei, tirando o fato de que Arelon nunca me escuta e nunca faz o que quero, também sou Alto-Maégi da Torre, lá todos me escutam e fazem tudo o que eu quero, tremenda chatice, faltam aprendizes espirituosos na Primeira Cidade. – Nogard e Arwen estavam tão adimirados pela imagem de Edaliom que não conseguiram retribuir a cortesia e dizer seus nomes. Edaliom voltou-se para Jih’ndo – Senhor Jih’ndo, seja bem vindo à cidade.
  Jih’ndo acenou com graça em seu cavalo.
  - Muito obrigado, Senhor Edaliom.
  Agora Edaliom olhava para Grum.
  - Lorde. – disse educadamente Edaliom, e acenou com a cabeça.
  Lorde Grum apenas fez uma leve reverência, estava com um humor especialmente amargo naquela noite.
  Mas o sorrizo de Edaliom não morreu, permaneceu cordial e educado.
  - Por favor entrem, sei que querem apenas reabastecer provisões, pois sei para onde vão, mas permitam-me oferecer algum alimento e alguma coisa quente para beberem, a noite esta particularmente fria e úmida esta noite.
  Jih’ndo e Grum concordaram, e eles deceram a ponte interna. Ao fundo a cidade se erguia, como uma montanha de casas, com o Grande Castelo Branco em seu cume.
  Aos pés da muralha, na parte interna da cidade havia uma enorme torre de madeira, era alta e volumosa, ora ela se inclinava para a direita, ora se inclinava para a esquerda, como ela não cai? Essas madeiras estão todas podres e ela não me parece nem um pouco estável, pensou Arwen olhando para a torre.
  - Não se preocupe, minha jovem e corajosa Arwen Venderim, essa torre foi erguida com magia e é a magia que a mantem de pé, ela não cairá. – disse Edaliom sorrindo.
  Arwen e todos ali não puderam deixar de estranhar o fato do velho saber o nome da garota.
  E Edaliom também respondeu a isso, sem ninguém fazer uma pergunta sequer.
  - Um Maégi sabe de muitas coisas, isso é verdade e é sabido, um Maégi pode adivinhar se irá chover ou se irá receber visitas, e se essas visitas são desejadas ou não, isso é verdade e é sabido, imaginem então o que um Alto-Maégi sabe. – disse o alto homem, abrindo as portas duplas da torre – Por favor fiquem à vontade.
  Os cavalos foram deixados do lado de fora, e eles entraram, pingando da chuva.
  Todos sentaram-se nas mesas que ali estavam dispostas, Jih’ndo e seus homens, Grum e seus guerreiros, Guillar e seu cantil, Arwen e Nogard. O lugar era claro, iluminado por muitas lamparinas, era mais amplo visto por dentro que por fora, possuia escadas em espiral ao longo das paredes e em cada piso havia livros nas paredes, Edaliom explicou que haviam nove andares na torre, tirando o térreo, e que em cada andar se aprendia uma arte diferente. Foi servido, por jovens aprendizes, chá quente de ervas e queijo com pétalas de uma flor comestivel, que Edaliom não quis contar qual era. A todo momento Maégis aprendizes andavam de um lado para outro da torre, uns vestiam túnicas e capas verdes, outros azuis, outros amarelos e muitas outras cores, o Alto-Maégi contou que cada cor representava o nivel de aprendizado de um aprendiz.
  Quando todos se alimentaram Jih’ndo e Grum se levantaram para ir até a cidade comprar provisões, deixando Nogard, Arwen e Guillar aos cuidados da Torre-dos-Maégis.
  - Acho que esta na hora de uma lição – disse Guillar, e se pôs de pé -, então devo ir lá fora, lições não são minhas atividades preferidas, com licença senhores. -  e saiu, cambaleando e tropeçando em livros e aprendizes.
  Edaliom olhou para as crianças com seus olhos azuis, suas sobrancelhas eram densas e saltavam para fora da aba do chapéu, estudou as crianças por um momento e então sorriu.
  - Nogard, Arwen, tenho algo que irão gostar de ver, venham comigo. – e eles caminharam até os fundos do andar térreo da torre, ali havia uma pequena porta, onde havia uma orelha de madeira entalhada, Edaliom se aproximou da porta, encostou seus lábios na orelha e cochichou algo, no mesmo instante a porta se abriu, com um som muito alto – sentem-se, eu volto em um instante, e saiu.
  A sala era pequena, também tinha as paredes repletas de livros, um enorme lustre, repleto de velas iluminava a sala, havia uma mesa com muitos papéis e uma grande poltrona de um lado, com duas cadeiras simples de madeira do outro, ali estavam sentados Nogard e Arwen, morrendo de medo e de curiosidade ao mesmo tempo, então o velho voltou, trazia um pequeno livro empoeirado, um pequeno frasco brilhante e uma rosa de vidro.
  Ele se sentou, jogou a pilha de papéis no chão, e pôs o livro, o frasco e a rosa na mesa.
  - Em primeiro lugar, não sou eu quem lhes dá esses presentes, estavam aqui para serem entregues a você, antes mesmo de vocês nascerem, portanto se não gostarem não reclamem a mim, pois nada poderei fazer, entendido? – perguntou o Maégi.
  As crianças engoliram seco e acenaram positivamente.
  - Pois bem, em primeiro lugar, Arwen Venderim da antiga Bolkur, entrego-lhe a Rosa de Erodillis. – e estendeu a rosa de vidro para a garota – Vamos, pegue é sua. – Arwen pegou a rosa com mãos trêmulas, cheia de medo de quebra-la – Não se preocupe, ela é inquebrável, minha jovem. Pertenceu à Erodillis, uma jovem Banedúim que deu sua vida em nome do amor, foi Erodillis quem acendeu uma chama no coração de um guerreiro a muito não visto, um Banedúim que jurou proteger as terras de seu povo da invasão Jeh’khgari, guarde essa rosa como seu coração, pois ela poderá mudar o destino de muitos.
  - Obrigado. – agradeceu a garota, mordendo o lábio com receio de quebrar o presente tão valioso.
  Arwen não podia pensar em mais nada além do que disse.
  - Para Nogard, o garoto sem sobrenome, eu entrego, em primeiro lugar, o último frasco de Prata-Sentimental, um metal líquido muito raro e mágico, da antiga Maégi Banedúim, Melera a Contente, nesse metal você poderá colocar todos os seus sentimentos e produzir anéis, correntes e braceletes para todos os seus entes queridos. – e estendeu o frasco para Nogard, o garoto pegou e agradeceu com um aceno muito sincero – Em ultimo lugar, porém não menos importante, eu entrego à Nogard, um livro empoeirado. – e estendeu o livro para Nogard.
  Nogard pegou o livro, era um livro comum de poucas páginas, tinha uma capa vermelha e estava muito empoeirado, o garoto passou a mão sobre a capa, afim de remover a poeira e descobriu uma figura.
  - Uma lança fincada na lua? – perguntou o garoto sem perceber.
  Edaliom juntou as mãos sob o queixo e apoiou os cotovelos na mesa.
  - Este é o símbolo de Jaoh’ndar, e este é o seu diário, leia-o Nogard, e aprenda sobre coisas do passado, coisas que serão importantes para você no futuro. – Nogard não sabia o que dizer, nem mesmo um obrigado lhe vinha aos lábios, Edaliom entendeu rapidamente – Não precisa agradecer nem ficar assustado, ele é seu e estava aqui para ser entregue a você, muitas coisas ainda acontecerão Nogard, e você fará parte de muitas delas, direta ou indiretamente, este diário o ajudará a entende-las melhor, mas é importante que você o mantenha em segredo, ele é de conhecimento de poucos e assim deve permanecer, agora vamos, ja é hora de partir.
  E eles saíram da sala, no mesmo momento em que Jih’ndo, Guillar e Lorde Grum entravam na torre, o belo Jeh’khgari os olhou com desconfiança mas apenas riu com o canto dos lábios, Jih’ndo gostava de saber das coisas, mas sabia que não se pode saber de tudo.
  - Vamos! – rugiu Grum, sem nem ao menos agradecer a hospedagem.
  - Sim, é hora – disse Edaliom -, eu os acompanho.
  - É muita gentilesa sua, Senhor Alto-Maégi, eu agradeço em nome de todo nosso grupo, e principalmente em nome de Lorde Grum, sua hospitalidade e educação. – disse Jih’ndo, sendo cortês e provocando Grum ao mesmo tempo.
  Eles subiram a ponte interna novamente, rumo ao portão, a chuva tinha parado de cair, todos saíram com cavalos completamente carregados. Enquanto atravessavam o portão Edaliom puxou a manga de Nogard, que estava em seu Arkas, seus cabelos estavam cada dia mais compridos e ele ficava mais alto a cada dia.
  - Eu achei muito belo. – disse o Maégi.
  Nogard não entendeu o elogio.
  - O que o Senhor achou belo?
  - O seu colar de madeira, esse com a imagem de um Dragão.
  Nogard congelou de espanto, o colar, como pude ter esquecido de retirar o colar, e como não percebi que estava com ele no pescoço? Pensou o garoto, sentiu um frio na barriga tão intenso que quase caiu da sela. Ele não falava de Dragões e não deixava ninguém ouvir suas preces noturnas, mas o colar estava ali, desde o dia em que ele o perdera em frente à Taverna do velho Lumber-meio-nariz, desde o dia em que Merlon o devolveu, no bosque.
  - Me... Senh... Digo...
  - Não diga nada filho, eu já o conhecia. – disse o velho, apoiando-se em seu cajado.
  - O conhecia? – perguntou Nogard.
  O velho aproximou-se de Arkas, era tão alto que não precisou de esforço para alcançar o ouvido de Nogard.
  - Fui eu quem o fez, e fui eu quem lhe deu. – disse o velho. Nogard o encarou com olhos esbugalhados, Edaliom sorriu e disse algo para Arkas em uma língua que Nogard não conhecia, o cavalo começou a andar – Boa viagem meu jovem, e lembre-se, estude o passado para entender o futuro. – e virou as costas, descendo novamente para sua Torre-dos-Maégis.




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