sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Nove Dragões a Lenda de Nogard

Capítulo 20 – Quando uma Rosa Cai


  A espada era leve como uma pluma, seus golpes eram precisos e graciosos, Luxímera, A Estrela na Escuridão, a espada mágica de Nogard.
  Ele estava treinando alguns golpes com um dos homens de Grum, muito maior e mais forte do que o menino, mas ele parecia estar se saindo bem, cada vez que o garoto girava em um golpe seus cabelos acompanhavam seu movimento, algumas mechas colavam em seu rosto suado e ele parecia sério e concentrado. Até o momento que o Ponta Lancense atingiu seu rosto com o punho da espada e o atirou ao chão, para diversão dos outros soldados. Nogard pôs a mão no rosto e um grande hematoma se formou no local, seus olhos se encheram de lágrimas mas novamente o garoto não chorou, ele nunca chorava, levantou-se apanhou sua lâmina amarronzada e a pôs de volta na bainha, bateu a poeira do corpo, suspirou e foi tomar seu desjejum.
  Uau, como Nogard esta alto essa manhã, pensou Arwen, que assistia a todo o treino do final da madrugada. O garoto parecia crescer de um modo estranho, ficava mais alto a cada dia e seus cabelos estavam cada vez mais longos, agora atingiam o meio das costas de Nogard. O que o deixava muito feliz, além de curioso.
  Estavam agora acampados em algum lugar entre Angur e o inicio da Passagem das Montanhas, o dia nascia e todos começavam a acordar. O acampamento era simples, apenas algumas esteiras de dormir, feitas com gravetos e lã, uma fogueira para iluminar alguns poucos metros noite adentro, e uma única barraca, onde dormia Jih’ndo, sozinho. Ali também era o local onde Jih’ndo compartilhava o pequeno-almoço com os jovens.
  Arwen sabia que eles estavam se aproximando das montanhas, Jih’ndo havia lhes contado que estavam a poucos dias da Passagem, no entanto o frio lhes contava mais, desde que deixaram Angur começaram a perceber uma temperatura diferente daquela que estavam acostumados, um frio cortante que vinha do Norte, um vento e uma brisa gelada que até então Nogard e Arwen não conheciam.
  O desjejum foi rápido, mas Arwen não pode deixar de notar a maneira como Nogard estava comendo.
  - Então são quatro canecas de leite, seis pães com pasta de morango, duas maçãs inteiras e quatro cachos de uvas, ainda bem que não tem que pagar por isso, Nog, ou teríamos que fazer espadas para toda Andor.
  Jih’ndo sorriu amigavelmente.
  - Não tenho culpa – disse Nogard -, não sei o que está acontecendo, apenas estou... faminto, como nunca estive antes.
Arrumaram as coisas e desfizeram o acampamento, em poucos minutos já estavam se movendo novamente.
  - Sou só eu ou você também esta com calos? – perguntou Arwen.
  Nogard fez uma careta e passou uma das mãos na parte interna da coxa.
  - Calos? – perguntou o garoto – Eu acho que meus antigos calos estão feridos e minhas feridas tem novos calos.
  De fato não era de se estranhar, a viagem era longa e o ritmo imposto por Lorde Grum era extremamente puxado, Jih’ndo havia estimado um mês para a viagem, mas nem metade disso havia passado e eles já estavam se aproximando da Passagem, e Nogard e Arwen podiam sentir isso na pele.
  Continuaram em grande velocidade, iam agora em direção ao Oeste, suas provisões ainda suportariam vários dias, mas naquele ritmo muito iria sobrar. Após algumas horas de cavalgada Grum acenou para o grupo reduzir a marcha. Arwen mantinha sua Rosa de Erodillis dentro do vestido, vez ou outra afastava o colarinho e dava uma olhada para dentro da roupa, só para ver a rosa brilhar à luz do sol.
  - Jih’ndo você conhece a história de Erodillis? – perguntou Arwen, para desespero de Nogard. Que lançou um olhar de reprimenda à garota. Que respondeu com uma língua de fora.
  O rico e belo Jeh’khgari estranhou a pergunta, mas apenas sorriu com o canto de seus belos lábios, arrumou sua presilha de cabelo e jogou os longos cabelos para trás.
  - Pensei que você fosse um tipo diferente de garota, Arwem, mas vejo que todas as jovens se entregam às curiosidades do amor, em determinado momento. – na verdade Arwen não dava a minima para o amor, ou suas curiosidades, apenas gostaria de saber a história por trás de seu presente secreto – Foi a quase mil anos, quando os primeiros Jeh’khgari conquistadores chegaram a Andor, não se sabe muito sobre a verdadeira história mas especula-se que, quando a Batalha de Belindor estourou houve um homem e uma jovem, que se casariam naquele dia. Durante a batalha Erodillis lutou bravamente ao lado de seu amado, assim eram as mulheres Banedúim, elas lutavam ao lado dos homens, porém, infelizmente, em determinado momento da batalha eles foram separados, por espadas e lanças, Erodillis se viu afastada de seu amado e percebeu que ele estava em apuros, de cima de uma enorme pedra veio uma flecha, de um arco de osso Jeh’khgari, tão certeira quanto mortal, endereçada ao coração do seu prometido, mas foi o peito de Erodillis quem foi golpeado pela flecha.
  Arwen estava boquiaberta, e Nogard um pouco desconfortável com toda aquela história de amor, casamento e coisas do tipo.
  - Ela o salvou! – disse Arwen, concluindo o resto da história – Ela deu sua vida por ele.
  Jih’ndo sorriu tristemente.
  - Sim, minha jovem, ela o salvou, e com a própria vida, quando Erodillis beijou o silêncio e caminhou para os Campos de Paz, uma rosa se desprendeu de suas vestes, este artefato é conhecido até hoje como a Rosa de Erodillis, mas seu amado não pode obtê-la, os Jeh’khgari a apanharam primeiro, e a mantém até hoje, nesse momento uma fúria sem tamanho tomou conta de seu amado, se diz que ele deu cabo de um pelotão Jeh’khgari inteiro, aproximadamente sessenta homens caíram perante sua ira e seu pranto, este homem jurou jamais descansar até o dia em que a terra de Andor retornasse aos antigos donos, os Banedúim, acreditasse que ele ainda anda por Andor, no Deserto Branco, clamando por sua amada e chorando lágrimas de vidro, como um fantasma e uma sombra.
   Arwen tocou a rosa sob o vestido, pelos Dragões, que história triste, essa rosa continha a ultima lembrança dela, e ele não pôde ficar com ela, não se preocupe, Amado-de-Erodillis, eu a manterei à salvo, pensou Arwen, se rendendo àquilo que Jih’ndo havia lhe dito.
  Guillar, que estava o tempo todo de cabeça baixa, ouvindo a história pigarreou.
  - Perdoe-me, Senhor Jih’ndo, mas se me permitir, sei alguma coisa sobre as antigas canções dos Banedúim, poderia tocar uma canção que serve o momento. – apesar de estar bêbado, como sempre, a voz de Guillar era séria e triste.
  - Acho que não tem problema algum, de fato não me orgulho do fato de que meu povo foi o responsável por tal tragédia, e além disso Grum esta bem à frente, creio que não ouvirá a canção.
  Então Guillar enfiou uma mão em seu grande saco de coisas e retirou seu alaúde, permaneceu em posição durante algum tempo, as pontas dos dedos tocando as cordas exatas, o Bardo Bêbado fitou o chão durante um bom momento, seus cabelos cobriam-lhe a feição, mas Arwen pode jurar que viu os olhos do velho cheios de lágrimas.
  E então ele tocou, com amor e paixão, como só Guillar, o Bardo Bêbado sabia tocar.



 Olhos de alma doce incrustam a divindade de sua face desejada,

  Que compunham um sorriso gravado de vida à vista de seu amado para sua amada

 

Olhos guardiões dos sonhos de felicidade,

  Transparecem o desejo de ter-lo envolto em seus braços pela eternidade

 

Olhos objetivos combatem com fervor a ameaça que os alcançou,

  Afim de trazer ruínas ao mundo de anseio dos prazeres que o desejo dos amantes criou

 

Olhos que cruzaram a batalha para encontrá-lo,

  Temerosos pelo pesar de amargura que seu coração apressou-se em segredá-los

 

Olhos que não pestanejaram ao deduzirem aquilo destinado,

  Que na ponta da flecha estava o percurso para os Campos de Paz de seu amado

 

Olhos que gotejaram rubro até estarem esvaídos de sonhos, de alma e de vida,

  Presenteando seu amado com o desespero na infinidade da angustia, que a solidão reservara com sua partida.

 

   A canção era bela e harmoniosa, mas continha uma triste verdade, todos ouviram com atenção as palavras de Guillar, pronunciadas com sua voz ébria. Por um momento nada se disse, apenas trotaram em direção ao inicio da Passagem. Chegaram no final da noite, já estava escuro a algum tempo. A passagem era gigantesca, dois aglomerados de montanhas em ambos os lados de uma longa estrada, eram tão altas que seus picos estavam escondidos entre as nuvens. Uma longa estrada se estendia até onde os olhos podiam ver, uma estrada de pedras, gelo e neve.
  Ali o gelo e a neve imperavam, o frio era cortante, e já não dependia mais da brisa ou do vento, o frio estava ali, presente o tempo todo, estivesse ventando ou não.
  - Alto! Vamos acampar aqui. – bradou Grum, para o espanto de Arwen e Nogard, geralmente acampavam a cada dois ou três dias, mas tinham acampado na noite anterior – Vamos nos preparar para atravessar a passagem.
  - Se preparar? – perguntou Nogard à seu amigo Guillar, que já era parte integrante do grupo e já não recebia para cantar, agora era um convidado, um amigo e recebia seu vinho gratuitamente de Jih’ndo.
  - Sim, não será fácil passar por essa enorme estrada, essas montanhas são antigas, e guardam muitos segredos e perigos. – disse Guillar desmontando – Mas o que Grum teme não é segredo para ninguém, ele teme aqueles que vivem nas montanhas, e eu não estou falando dos Ponta Lancenses. – disse Guillar e riu, com sua tão singular risada – Fantasmas, jovem Nogard, ele teme os fantasmas.
  Nogard ficou um pouco apavorado com a resposta de Guillar.
  Arwen no entanto já tinha uma questão em mente.
  - Mas fantasmas não existem. – disse a garota dando de ombros – Todos aqueles que morrem vão para os Campos de Paz.
  - E quanto àqueles que não morrem? Ou pelo menos não morreram. – perguntou Guillar.
  Dessa vez Arwen se calou, não tinha entendido o que Guillar havia dito e não queria corrigir o alegre bardo.
  - O que ele teme são Os Fantasmas, mas não são espíritos de homens amaldiçoados, não os fantasmas que vocês conhecem, são homens de carne e osso, alimentados pela mágoa e pela esperança. Os Fantasmas são uma irmandade de ladrões, Nogard e Arwen, ladrões que vivem nessas montanhas, atormentando os viajantes da passagem, roubando e matando aqueles que eles julgam serem culpados por algo muito antigo.
  - Esses... homens, que você diz – argumentou Arwen -, são ladrões que se escondem perto dos mais mortais guerreiros do reino? Eu chamaria eles de Os Desinformados.
  Jih’ndo estava ouvindo toda a conversa, e o ultimo comentário de Arwen fez o Jeh’khgari sorrir.
  - Com licença senhores, mas devo lhes dizer que esses Fantasmas estão aqui justamente pelos Ponta Lancenses.
  Guillar deu um grande gole em seu cantil e chamou a atenção de todos com um enorme arroto, o que fez Nogard sorrir.
  - Os Fantasmas são uma irmandade muito antiga, Arwen, eles devem existir a mais ou menos novecentos anos, e alguns deles são mais velhos que isso.
  Então tudo se esclareceu.
  - Banedúim. – disseram Arwen e Nogard, em uníssono.
  - Escória Banedúim! – disse Grum, se aproximando, intimidador, com seu enorme cavalo de guerra – um ultimo pedaço dessa raça derrotada, alguns deles ainda vivem aqui nessas montanhas, como ratos em um sótão, atacando Pontas de Lança durante a noite, nas sombras. – virou a cabeça e cuspiu – Mas eu os farei representarem seus papéis de fantasmas, e não serão mais um problema. Agora parem com esses assuntos, e montem logo esse acampamento.
  Logo tudo estava arranjado, as esteiras dispostas, a barraca de Jih’ndo erguida e a fogueira queimando. Quando todos estavam dormindo, e só então, Nogard resolveu abrir o presente que havia recebido de Edaliom, o diário de Jaoh’ndar.
  Logo no inicio havia uma folha solta, onde dizia, esse é o diário pessoal do Primeiro de Cinco Generais, Jaoh’ndar, Primeiro Senhor de Pontas de Lança, Salvador da Nova Terra, Conquistador de Joh’han, e foi escrito pelo próprio punho que retirou Dorean de seu trono de loucura.
  Nogard ficou maravilhado com o pequeno bilhete, colocou-o de lado e começou a ler.
  É o ano de mil e quinhentos da Era das Conquistas, Jeh’khgar foi completamente conquistada, Joh’han apareceu a mim em um sonho e me disse que eu veria coisas que meus olhos jamais poderiam explicar.
  Hoje eu presenciei esse fato, o Mar da Névoa se esvai na parte Norte, emfim descobrimos que ele não representa o fim do reino de Joh’han, mas apenas uma divisória que seria removida por Ele no momento exato.
  Navegamos por águas desconhecidas, mas a coragem e a fé nos movem, continuaremos adiante.
Chegamos enfim à essa terra nova, passamos apenas vinte dias no mar, devo deixar claro aqui que jamais poderia ver tamanha beleza em um único lugar, as árvores, as flores, os rios, tudo aqui é perfeito e belo, o dia é claro e longo, muito mais longo do que eu poderia imaginar.
  Esta terra esta habitada por homens altos e de longa barba, andam em bandos e tocam músicas a todo o tempo, vestem roupas de folhas e galhos, suas mulheres são extremamente belas,  parece que vivem todos em paz, em sua grande maioria são velhos, acho que não teremos problemas em derrotá-los.
  Esse povo se chama Banedúim, e meus conceitos sobre eles foram extremamente precoces, apesar de serem velhos se mostraram altamente habilidosos e corajosos, eles possuem algum poder secreto, vi com meus próprios olhos um homem tocar uma árvore e vi ela caminhar, não sei se é o local ou se estou perdendo meu juízo, preciso fazer minhas preces.
  Hoje perdi metade de minha frota, eles estão nas árvores e no solo, parece que esse povo tem uma conexão com o local, com a natureza em si.
  Chegaram mais homens de Jeh’khgar, vamos começar a invasão.
  Novamente perdi muitos homens, começo a duvidar se isso não é um sinal.
  Prendemos um dos selvagens, tentei interrogá-lo mas ele não falou nada que eu pudesse compreender, mandei deixá-lo preso até decidir o que farei com ele.
  O selvagem aprende rápido, estou começando a entender o que ele quer me dizer, aparentemente o homem deseja trair seu povo em troca de algo, não sei se isso me parece certo mas darei uma chance ao velho, estou perdendo muitos homens, e eles estão perdendo sua fé.
  O selvagem se chama Tartos, um nome extremamente estranho para mim e meus soldados, existe um poder secreto em uma montanha, Belindor ele disse, o poder de trazer feras que voam pelos ares, o selvagem diz que podemos usá-las para derrotar os Banedúim.
  Fui reconhecer o terreno da montanha essa manhã, e a vi colhendo flores em uma roseira tão grande quanto um de nossos navios,  não consigo mais pensar em outra coisa, o selvagem disse que ela se chama Mélis, estou decidido a não fazer mal a essa jovem.

  Quando Nogard chegou nessa parte seus olhos estavam cansados, o garoto colocou seu presente sob a camisa e fechou os olhos, Jaoh’ndar e Mélis, foi a ultima coisa que o garoto pensou antes de adormecer.



Encontrou algum erro, tem críticas ou sugestões?
Reaja e comente!!



Licença Creative Commons
Este obra foi licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivados 3.0 Brasil.




Nenhum comentário:

Postar um comentário