Capítulo
10 – Torta de Morangos com Castanhas
A carroça de Merlon
fazia um barulho ensurdecedor em contato com as pedras do pavimento, algo que
parecia diverti-lo, ainda mais pelo fato de que a grande maioria das pessoas
ali estarem começando a acordar agora. Renolon partilhava uma pequena carruagem
aberta com Jih’ndo, e Nogard montava Arkas, o que atraía muitos olhares,
olhares até demais, Arwen o acompanhava na garupa, e eles apontavam e davam
nomes a todas as coisas que viam. Viram lojas com paredes de todas as cores
possíveis, a Rua do Comércio era um arco-íris de tecidos e armas.
- Não deixe as cores
te enganarem garoto – disse Merlon -, a mais sombras nessa cidade do que os
homens podem ver.
- Ora meu velho
amigo – completou Jih’ndo com um sorriso-, e em que lugar não há.
Havia espadas,
lanças, escudos e cotas de malha, elmos de couro fervido e de aço, armaduras
leves e pesadas couraças de batalha, botas de todos os tamanhos e estilos,
também havia medicinas, provavelmente Bolkurianas, especiarias culinárias
vindas de Angur, animais em jaulas, leões prateados das montanhas ao norte da
cidade, ursos dos bosques de Lago do Rei e inúmeras águias e falcões, tecidos
de diversas cores atravessavam a rua de um lado até o outro, por cima das casas
e das lojas. A rua foi se abrindo gradativamente até que terminou numa enorme
praça, com um chafariz ao centro, com quatro cavalos de mármore empinados, um
em cada direção, e no seu centro havia um homem, um homem muito alto, um velho
cuja feição lembrava o Senhor Halgul, que Nogard e Arwen tanto atormentavam com
suas brincadeiras, estava com as mãos apontadas para os céus e de seus dedos
corriam água, a água cristalina do Rio de Ferro, que nascia nas montanhas.
- Quem é? –
perguntou Nogard.
Merlon estava conversando com sua Decadência e
não deu atenção ao garoto, mas Renolon o respondeu.
- Este é Tartos, um
antigo Maegi Banedúim, durante a batalha de Belindor ele se rebelou contra seu
povo e ajudou os Jeh’khgari a vencer a batalha, foi o responsável a espalhar a
magia Banedúim em meio aos Jeh’khgari.
Merlon pareceu
esquecer Decadência por um instante.
- Um traidor Nogard
– Renolon virou os olhos -, um homem que traiu seu povo, nunca traia os seus
Nogard, e não se deixe trair, confie cegamente em um homem mas sempre o
mantenha ao alcance da visão, ou da espada. E você, jovem Cavaleiro – disse
Merlon dirigindo-se a Renolon -, não vire seus olhos, isso não é nada... Régio.
Renolon abriu a boca
para dizer algo mas desistiu no meio do caminho.
A praça era cercada
por mais lojas, ali havia um quartel de Cavaleiros e um pequeno estábulo, ao
longe podia-se ver a grande Fortaleza Central, com suas altas torres e suas
muralhas internas.
- Chegamos meus
senhores – disse Jih’ndo, apontando para um grande par de portões -, espero que
estejam com fome.
A menção da palavra
fez o estômago de Nogard roncar tão alto que Arwen se assustou.
Enfim eles entraram
na construção.
Era um enorme cômodo
com algumas divisórias, o teto era feito de vigas pesadas de madeira, e era
alto o bastante para que um Dragão dormisse ali. Nogard desmontou Arkas,
reclamando de câimbras, e o entregou ao cavalariço de Jih’ndo, o homem
recusou-se a aceitar e Renolon deu uma gargalhada.
- Nogard, os Gravas
não precisam de cavalariços, eles se guardam e eles se retiram.
Nogard deu de ombros
e soltou as rédeas, no mesmo instante Arkas foi para a cocheira se alimentar e
beber um pouco de água.
- Cavalheiros. –
Jih’ndo acenou para seus convidados, mostrando-lhes uma porta, onde uma
divisória transformava-a em uma enorme sala de refeições.
Todos sentaram-se à
mesa e então os pratos começaram a ser servidos. Primeiro veio um grande leitão
assado, estalando e com a gordura ainda borbulhando em sua carne, um dos servos
despejou um punhado de mel e limão sobre a carne, afim de amaciá-la ainda mais,
alguns pães e algumas fatias de queijo foram espalhados à frente dos
convidados, dois enormes jarros de vinho foram postos em ambos os lados da
mesa, cornos de cerveja foram trazidos das cozinhas acompanhados por saladas
verdes e pequenas rodelas de laranja com abacaxi, Nogard e Arwen esperaram
salivando até que o anfitrião desse as boas à comida.
E quando o fez não
imaginou que o grupo estivesse tão faminto.
Merlon retirou uma
coxa inteira do leitão, Nogard e Arwen mordiam os abacaxis, e o sumo lhes
descia pelo queixo, até mesmo Renolon comia com vontade e sem modos.
Jih’ndo sorriu
satisfeito.
- Sabe o que é
melhor do que comer, meu jovem? – perguntou Jih’ndo.
Nogard estava com a
boca cheia demais para responder e apenas emitiu um ruído, que Jih’ndo deduziu
ser um não.
- Alimentar amigos
famintos. – bateu palmas e mais uma vez os criados do rico Jeh’khgari começaram
a se mover.
Cinco taças de
saladas de frutas com mel foram trazidas, acompanhadas por uma enorme torta de
morangos com castanhas, cuja polpa escorria pelas beiradas.
Nogard e Arwen não
tocaram nas taças, a torta parecia promissora demais para se perder tempo com
frutas picadas.
Após o café da manhã
mais completo que Nogard já viu, todos estavam satisfeitos, menos ele, que
continuava beliscando pedaços da torta de morangos.
- Bem, vamos aos
negócios então? – perguntou Jih’ndo, cruzando os dedos das mãos sobre a mesa.
- Acho que destino
seria a palavra mais adequada para o que trataremos aqui. – respondeu Renolon,
recostado na cadeira.
O Jeh’khgari sorriu,
abriu as mãos no ar e falou.
- Perdoe-me
Príncipe, mas para um Jeh’khgari tudo são negócios, desde o nascimento até o
sepultamento, e como meu velho pai costumava dizer, não faça negócio até que
ambas as partes falem tudo o que tem a dizer.
- Entendo. –
respondeu Renolon, mas não concordou – Somos diferentes com toda certeza.
- Ah sim, isso com
certeza. – respondeu o Jeh’khgari, então se voltou para Merlon que montava seu
cachimbo, mesmo sem a permissão do dono da casa – Merlon, como faremos o tal
treinamento?
Merlon acendeu seu
cachimbo, sem pressa alguma, passou a mão na longa barba branca.
Estou passando mal, acho que comi depressa demais, pensou Nogard.
- Lorde Grum já esta na cidade? – perguntou o velho
ferreiro.
Jih’,ndo assentiu.
- Então não há muito
o que se tratar agora, ele ficará com as lanças, você com o dinheiro do
pagamento e com uma surpresa que arrumei para você. – disse o velho e riu.
Nogard ouviu a
palavra surpresa e se lembrou, meu
presente, esse Jeh’khgari me deve um presente, foi Merlon quem disse e Merlon
nunca me engana, então sem rodeios ou cortesias, se levantou.
- Senhor você me
deve um presente. – disse o garoto, completamente cheio de morangos.
- Devo? – perguntou
Jih’ndo sem se mostrar intimidado.
Nogard percebeu que
não ganharia coisa alguma, e ainda teria que explicar aquela falta de modos à
bota de Merlon.
- Foi ele quem
disse. – e apontou para Merlon.
- Ah, então agora
sou seu cavalo de carga, para levar as chicotadas em seu lugar? – ironizou
Merlon.
Definitivamente não deveria ter comido mais torta, Nogard começava
a ficar tonto.
Jiih’ndo não conteve
mais o sorriso e riu abertamente.
- Muito espirituoso
da sua parte meu rapaz, cobrar algo que não lhe devem e ainda por a culpa no
Senhor General Merlon. – e gargalhou novamente – Seu presente esta à salvo,
você irá recebe-lo na hora certa. Mas posso lhe adiantar do que se trata, é uma
arma, não uma como a que Merlon carrega mas é uma arma mágica, existem muitas
armas secretas espalhadas pelo mundo, Nogard, umas trazem o bem e outras trazem
o mal, outras ainda podem trazer ambos ou nenhum. Mas por hora vamos resolver
seu destino.
Meu destino? Pensou o garoto que não estava entendendo muito onde
aquela conversa daria, decidiu então se calar e apenas prestar atenção.
- Lorde Grum não irá
querer levar o garoto. – disse Renolon.
- Sinto lhe
informar, Cavaleiro, mas ele não tem escolha. – disse Jih’ndo, removendo um
morango da torta e o levando à boca. – Atualmente possuo mais da metade dos
investimentos de Pontas de Lança, investimentos militares, impostos de grandes
senhores e algumas lojas, ele não terá escolha, eu asseguro.
- Então esta feito –
disse Merlon, virou-se para Nogard -, ainda quer ser um Cavaleiro, filho?
Nogard ficou
surpreso com a pergunta, a poucos dias atras não era mais do que um garoto em
Ferro Forte, carregando baldes de água, sacas de carvão ou toras de madeira,
agora era amigo de um Cavaleiro, o Príncipe de Arelon, comera na residência de
um dos homens mais ricos do reino e possui um cavalo sagrado de mil anos, todas
essas idéias juntas e os morangos embrulharam-lhe o estômago, e sua resposta
veio em forma de vômito, uma das criadas de Jih’ndo veio correndo limpar a
sujeira do garoto.
Nogard levantou-se
da cadeira e parecia assustado, começou a olhar para os lados da mesma maneira
que havia feito na Colina de Mélis.
Merlon levantou-se, ele sente alguma presença, ele conhece o
espírito das sombras melhor do que eu mesmo, pensou o velho e tocou o punho
de raízes de Mitrhiilden. Renolon desembainhou sua lâmina. Arwen estava
assustada demais para falar ou fazer alguma coisa e Jih’ndo estava chamava
alguns guardas. Arkas empinava e relinchava como um louco.
- O que foi Nogard,
pressente algo? – perguntou Merlon.
- Sim está se
aproximando, e rápido, parece que esta dentro de mim, posso senti-lo. – disse o
garoto e então caiu sentado.
- São Bulks garoto.
Você pode sentir a presença deles, assim como eu. Me diga quantos? – perguntou
Merlon, agora como General, importando-se com números.
Nogard fechou os
olhos, o ar passava por sua cabeça como um redemoinho de pensamentos, não via
nem sentia nada, o barulho do vento era ensurdecedor, sentiu as nuvens no rosto
e teve certeza de que estava desmaiado.
- Nog! – Arwen
conseguiu gritar.
Então ele abriu os
olhos novamente e olhou para Merlon, seus olhos estavam vermelhos, de terror e
medo.
- Não são Bulks –
disse o garoto -, é maior.
Então todos ali
ouviram o som, um som que era familiar e ao mesmo tempo novo, um som que não
era ouvido a mais de dez anos. Os sinos e as trombetas da cidade eram tocados,
em sintonia amedrontadora, os mais velhos conheciam aquela melodia, Merlon chamava
aquela canção de Perdição dos Homens, e ela só era tocada em uma ocasião.
- Dragão. – disse
Nogard, esquecendo-se da proibição de Merlon.
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