sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Nove Dragões - A Lenda de Nogard

Capítulo 15 – Cavalo A Mesa



   A carroça já estava guardada no pequeno celeiro de Merlon, a entrega havia sido feita e algum ouro fora obtido do pagamento total, que pertencia a Jih’ndo. O ouro não era muito mas Merlon não precisava de muito, aquilo o ajudaria em algum momento da viagem, e ele sabia que não demoraria muito. A mensagem foi dada aos pais de Arwen, a Bolkuriana Mawreen e seu marido, o desconfiado Multer, pareceram não engolir a história de que o Rei convocara Arwen, mas não se atreviam a contrariar Merlon, não se pode chamar um dos homens mais conhecidos e corajosos de Andor de mentiroso sem provar as consequências. Serena por outro lado jamais desconfiaria de Merlon, e com ela a conversa foi completamente diferente.
  Serena sabia desde o começo qual seria o destino de Nogard, isso em parte acalmava o seu coração e em parte tornava suas noites angustiantes, ela nutria uma esperança de que se tudo desse certo, e o garoto cumprisse aquilo que Merlon dizia ele ter nascido para fazer, pudesse desfazer o mal que ela fez a Andor no passado, porém ela temia também o pior, se tudo aquilo não desse certo e se seu filho fosse ferido em batalha estaria sozinha novamente, dividida como da outra vez. Suas noites eram de preces aos Dragões, suas manhãs eram acompanhadas de lágrimas e suas tardes eram regadas por pensamentos e lembranças, de seu marido, de como eram felizes, de como viviam bem, da maneira como serviram Andor e o povo e de como ele a magoou, uma mágoa tão profunda quanto o leito de um rio. A conversa com Merlon não levou mais do que alguns minutos, Serena perdoou Nogard, por aquilo que ele havia pedido perdão, mas em seu coração ela estava dividida novamente, queria seu filho perto mas também queria os homens à salvo, um dilema que parecia fadado a ela, geração após geração.
  Merlon guardara seus cavalos e os tratara rapidamente, então ele pegou um deles e se encaminhou para o Sudoeste, o mesmo cavalo branco e magricela que carregava a carruagem de Merlon, chamava-se Sofhlax e era filho de um Gravas com uma égua comum, era branco como as nuvens e era magro, tão magro que surpreendia por aguentar um homem tão alto e corpulento quanto Merlon em sua sela.
  Merlon agora se aproximava da Praça Jaoh’ndar, vinha cavalgando seu cavalo magricela a muito tempo, esperava chegar rápido a Porto Vitória, ali, talvez, encontraria uma oportunidade de falar, a voz do Rei estava cada vez mais sussurrante, e já não atingia toda a Andor como antigamente, Merlon era uma chance, um rugido em meio ao barulho da algazarra.
  Merlon subia uma pequena colina, repleta de rosas-de-fogo, uma planta muito bela porém mortal ao toque, vitimava amantes em suas tentativas de impressionar donzelas, desde o começo dos tempos, do outro lado estaria a pequena praça e suas altas casas e torres.
  - Pois é, Decadência, meu caro Sofhlax ainda esta um tanto forte não acha? – perguntou Merlon.
  Obviamente a cicatriz não respondeu, mas ele escutou.
  - Ah deixe de bobagens, existe sangue Gravas correndo nas veias desse velho fantasma dos cavalos, não há falta de apetite quando se trata de batalhas, certo Sofhlax?.
  O cavalo balançou a cabeça de um lado para o outro, aparentava ser uma forma negativa mas Merlon não viu isso.
  - Isso garoto, vamos, o Sul te pertence.
  E continuaram subindo a colina, a capa cinza de Merlon dançava ao vento, seus longos cabelos e sua barba comprida eram sacudidos em todas as direções, ao longe podia-se ver a Sombra Sem Fim, uma mancha negra nos céus, o Falso Reino. Merlon encarou as tempestades negras e vermelhas entre as nuvens de sombra, com uma grossa sobrancelha erguida, então desviou o olhar, a névoa negra não merecia olhares, apenas desprezo.
  No topo da colina Merlon pode ver Praça Jaoh’ndar, ou pelo menos aquilo que dela restou. A pequena vila estava completamente queimada, suas belas torres e altas casas estavam destruídas e derrubadas por todo o local, a antiga homenagem ao guerreiro Jeh’khgari que derrotou e expulsou Dorean se perdera, em meio a tabuas queimadas e ferro retorcido. Merlon passou os olhos pelo local de cima da colina e não viu nenhum Vitorino, aqueles que eram de Porto Vitória. No lugar da antiga vila, que Merlon tanto desejava ainda ver, havia um enorme acampamento, mas não se via o simbolo de Porto Vitória, um barco branco sobre fundo cinza, em nenhuma das bandeirolas e dos estandartes, eles ostentavam uma estrela negra sobre um fundo branco, o símbolo de Força dos Homens. Merlon não pode acreditar no que estava vendo, ele pretendia desencorajar a loucura dos homens daquela região, alistá-los para uma aliança e rumarem para o Grande Paredão de Montanhas, a fim de conterem a marcha dos Bulks. A guerra entre as cidades não só havia começado como parecia estar em curso a um bom tempo, estranhou o fato de Lago do Rei não enviar um mensageiro a Pescoço dos Homens, mas logo sua estranheza foi curada, ao lado da Estrela Negra estava a Torre Cinza sobre fundo azul-marinho, o símbolo de Lago do Rei.
  - Chegamos tarde, Decadência, chegamos atrasados. - disse Merlon com pesar.
  E desceu a colina em direção ao acampamento, galopando a toda velocidade, tanto quanto o magro Sofhlax pôde leva-lo. Chegou ao acampamento e foi recebido por dois lanceiros, com suas lanças voltadas para o rosto de Merlon, Sofhlax e Decadência.
  - Alto velho, quem vem lá? – perguntou um dos lanceiros, vestia uma leve armadura de couro, esbranquiçada e com uma estrela negra no peito, seu elmo era redondo e possuía três pontas sobre a cabeça.
  - Sou eu, lanceiro, sou eu quem vem e sou eu quem vai, sou eu quem põe juízo na cabeça dos homens estúpidos como você – disse Merlon, desdenhando do lanceiro que estava acampando onde não devia -, não me identifico para os que estão trilhando o caminho errado, e nem deixo que o trilhem, derrubo-lhes do cavalo e tomo-lhes as lanças, esta trilhando este caminho neste exato momento e eu não vejo cavalos entre as suas pernas. – então Merlon moveu-se rápido como um leopardo e tomou as lanças dos guardas, segurando-as pela lâmina mas sem se cortar um centímetro sequer. Atirou-as para trás – Ora que infortúnio, peguem suas lanças soldados, como defenderão o acampamento com as mãos nuas.
  Os soldados estavam surpresos e irritados, correram em direção a suas lanças e Merlon correu em direção ao acampamento.
  Passou por muitas tendas, homens estavam usando armaduras leves e prontos para qualquer imprevisto, enquanto ele passava eles acenavam com a cabeça e o cumprimentavam, sem saber que o verdadeiro imprevisto era ele próprio, muitos homens estavam bebendo, ou para criarem coragem ou por acharem que a guerra já estava vencida. Merlon avistou um alto mastro, era o mastro da maior tenda de todo o acampamento, e nele o estandarte da Estrela Negra e da Torre Cinza dividiam lugar.
  Mais guardas estavam ali na entrada, novamente eram dois lanceiros, mas dessa vez Merlon decidiu polpar palavras, investiu contra os soldados, que abandonaram a entrada da tenda tão rapidamente quanto puderam, e Merlon entrou, com seu cavalo e sua cicatriz.
  A tenda era ampla e alta, caberiam cinquenta homens ali sem desconforto, era branca e possuía estrelas negras pintadas em seu teto, seu mastro era decorado com inúmeras estrelas entalhadas na madeira e alguns estandartes enfeitavam a tenda, senhores que possuíam algumas terras ou ouro, Bolers e sua águia verde sobre fundo amarelo, Viroon e sua víbora vermelha sobre fundo verde, os Mafil, que eram parentes do castelão de Lago do Rei, ostentavam duas flechas brancas cruzadas sobre fundo negro, e havia também outras casas menores.
  Ali estavam Lorde Doufas, Senhor de Força dos homens, Lorde Mafilhem, Castelão de Lago do Rei, Vagros, parente e primeiro general dos exércitos de Doufas, e uma dezena de pequenos senhores, todos em volta de uma mesa com um mapa e todos com olhos arregalados e bocas trêmulas, perante a surpresa. Merlon era um homem alto e corpulento, sobre seu Sofhlax parecia maior ainda, sua barba e seus cabelos compridos eram brancos como a neve e seu manto cobria as ancas da sua montaria. Olhou sério para todos, um olhar amedrontador, abriu os braços e gritou.
  - Que espécie de loucura é essa aqui?
  Os homens se entreolharam sem ter resposta aparente, tomados pela surpresa e pelo medo, exceto Lorde Doufas, que mantinha-se calmo, o Lorde usava uma armadura Branca com uma enorme estrela negra sobre o peito, não usava um elmo, não teria serventia ali na tenda, rodeado de senhores lambedores de botas, que fariam qualquer coisa para ganhar a simpatia do sério e sistemático Lorde Doufas. Tinha os cabelos brancos e bem curtos, possuía um nariz fino e um queixo insolente que apontava para cima.
  - Os caval... – começou o primeiro general, Vagros Relonis, irmão da senhora de Força dos Homens, mas foi interrompido por Merlon.
  - Não se atreva a dar ordens a mim, parente de um Lorde, Andor só tem um General e você não é este homem. – disse Merlon, e olhou para Mafilhein, Senhor de Lago do Rei – Ficou sem mensageiros nos últimos tempos Castelão? Ou ficou sem a lealdade? Onde foi parar o título de Protetor do Lago que lhe coube outrora? – a ultima pergunta foi ácida e direta, havia uma resposta mas ela não seria dada da mesma forma direta.
  - Entenda, Merlon, são outros tempos, Andor esta se matando, dia após dia. – disse Mafilhein, em suas sedas, o Lorde era um antigo mestre da moeda de Arelon, e não se metia em armaduras nem em campos de batalha.
  - E vocês estão ajudando Andor e se matar mais depressa! Vocês senhores – disse Merlon apontando para os senhores vassalos de Força dos Homens – retirem-se imediatamente, a conversa que teremos aqui não é de seu interesse.
  Todos os senhores menores se levantaram para sair, mas Doufas pediu para que se sentassem novamente.
  - Com qual direito vem a minha tenda, em meio a uma guerra, ainda por cima montado a cavalo, indo contra as regras de moradia de Andor, contra um anfitrião que lhe recebe em sua moradia, nesse caso eu, ameaça meu general e intimida meus convidados, com qual direito você derruba estas cortesias e leis perante homens de bem, ferreiro? – perguntou Lorde Doufas. Sua pergunta era amarga e sem calor algum, o homem era direto mas também era calculista, felizmente Merlon o conhecia desde quando ele ainda chorava num berço de choupana.
  - Não ha tempo para discussões, sua cidade esta em perigo, como já deve saber através de Mafilhein, uma centena de Bulks treinados e equipados, armados e com sede de sangue e carne atravessam o Paredão nesse instante – Sofhlax bufava e raspava o casco no chão da tenda -, vejo muitos homens aqui hoje Doufas, se ainda conheço um pouco sobre números sua cidade esta pobremente guarnecida nesse momento. – disse Merlon, como um General experiente.
  Lorde Doufas deu um sorriso tão rápido quanto um piscar de olhos, voltou a sua seriedade um segundo depois, ele sabia que Merlon tinha razão, mas nunca deixaria tal concordância sair de seus lábios.
  - Não tenho preocupações vindas do Sul, ferreiro, bato à porta de um velho urso gordo e cansado, com oito mil soldados para tomar-lhe a cidade, não tenho exércitos a minha porta, não queimaram minhas vilas, quem deve ter medo aqui é Mooner, e não eu.
  Então é isso, os anos passaram mas você nunca esqueceu aquele dia, este homem continua rancoroso e envergonhado, pensou Merlon. Merlon sabia o sentido daquela guerra, uma divergência de muitos anos atrás, entre Doufas e Mooner, uma divergência que envolvia sangue e família, algo pessoal demais para Merlon se envolver, mas ele não poderia deixar as coisas continuarem rumando para a morte e a desgraça, já era tristeza demais guardar segredos e encobrir erros de outras pessoas, e tudo isso pelos homens que um dia foram seus inimigos. Merlon encarou cada um dos senhores naquela tenda, todos assustados e compelidos, a maioria deles não sabia o real motivo daquilo, o restante simplesmente não se importava. Merlon começou a desconfiar de que não mudaria aqueles homens. Não ali. Não naquela tenda.
  - Doufas, não sou mais um simples ferreiro, fui restituído, agora sou General Merlon novamente – nesse momento os poucos senhores que estavam desdenhando da situação, com os braços cruzados sob o peito, descruzaram seus braços e ficaram apreensivos -, venho aqui hoje em nome de Arelon, venho em nome do Rei.
  Vagros pareceu confuso, e antes que Lorde Doufas pudesse dizer algo se adiantou.
  - Mostre-me o documento! – exigiu o primeiro general Vagros, com uma mão estendida.
  Merlon teve vontade rir da sua cara, mas aquele não era o momento para sorrisos.
  - Esta aqui, em minha bainha senhor primeiro general, deseja vê-la, então venha pega-la! – e tocou o punho de Mitrhiilden.
  Vagros era um tolo, mas não era nenhum covarde, ainda mais na frente de todos aqueles senhores, os quais ele esperava governar algum dia.
  - Acompanhe-me até lá fora. – disse o primeiro general de Doufas.
  Mas foi impedido, a mão de Lorde Doufas tocou seu punho e o homem parou imediatamente.
  - Que seja então, General Merlon, porém creio que tenha perdido seu tempo vindo aqui esta manhã, existem coisas em curso, coisas das quais você não faz parte, portanto não pode interferir, Força dos Homens irá promover um cerco à cidade do velho urso em menos de três dias, eles são mais numerosos do que nós mas não tem estratégia de guerra em solo, sabe disso, Porto Vitória domina os mares mas em terra são simples construtores de barcos e fazedores de redes.
  Merlon entendeu a mensagem, Lorde Doufas não deixaria o velho Mooner Ruivurso escapar de suas Estrelas Negras, não desejou em momento algum chegar àquele ponto mas não havia outras alternativas, se Lorde Doufas dominasse Porto Vitória perderia o auxilio das duas cidades, e isso não ia de acordo com os seus planos.
  Não desejei isso, nem desejo, mas juro pelos Dragões, não deixarei que o reino caia, e o reino não é uma cidade apenas, lamentou-se Merlon, pensando naquilo que estava prestes a fazer, Porto Vitória era uma das maiores cidades de Andor, nela haviam mais de quinze mil soldados, infantaria treinada e preparada para os mares e sua fúria, em solo no entanto não eram muito habilidosos.
  Merlon encarou Doufas com seu olhar mais sério, o Lorde estava na outra ponta da mesa, Merlon incitou seu magro meio-gravas para cima do banco na extremidade da mesa, o cavalo foi caminhando vagarosamente, subiu no banco e logo depois subiu na mesa, os senhores levantaram-se e encostaram suas costas nas paredes de tecido da tenda, Lorde Doufas porém ficou imóvel, assistindo o velho se aproximar. Sofhlax parou a poucos metros do Lorde.
  - É esta a sua ultima palavra, Doufas? – perguntou Merlon sem cerimonias.
  O lorde acenou com a cabeça e todos seus senhores desembainharam suas espadas.
  - Não velho, irei prosseguir com a campanha, mas esta não é a minha ultima palavra, e quanto a você, quais são suas ultimas palavras? – Perguntou Doufas, sua boca era uma fina linha de desgosto.
  - Sorte. – respondeu Merlon.
  - O que quer dizer com isso velho? – perguntou o precipitado Vagros.
  - Que desejo-lhes sorte na batalha, Estrelas Negras, e que o exército de Mooner, as Marés de Outono, não os alcance, pois quando elas o fizerem vocês estarão condenados.
  Deu-se o silêncio por algum instante, o vento sacudia e balançava a lona da tenda, então os senhores começaram a sorrir, a rir e a gargalhar como loucos, Merlon encarava Doufas. Merlon, Doufas e Mafilhein eram os únicos que ainda mantinham a compostura na tenda, parte por serem os mais experientes parte por saberem o que aconteceria.
  - Eles não tem disciplina militar em solo, como você acha que as inofensivas Marés de Outono alcançarão as Estrelas Negras? As águas não sabem voar, velho ferreiro. – provocou Vagros novamente, e novamente foi precipitado.
  - Por que eu os liderarei, parente de um Lorde, e até onde eu sei, e eu sei de muitas coisas, tão pouco as estrelas sabem nadar. – respondeu Merlon, calando a algazarra.
  Virou seu cavalo magricela e se retirou da tenda, deixando para trás uma enorme montanha de senhores enfurecidos.
  Doufas acenou para que seus homens não o detivessem.

  - Espero que esteja pronta decadência – disse o velho, enquanto passeava com Sofhlax tranquilamente pelo acampamento, em direção a Porto Vitória -, é provável que nos banhemos de sangue outra vez.



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