Capítulo
15 – Cavalo A Mesa
A carroça já estava
guardada no pequeno celeiro de Merlon, a entrega havia sido feita e algum ouro
fora obtido do pagamento total, que pertencia a Jih’ndo. O ouro não era muito
mas Merlon não precisava de muito, aquilo o ajudaria em algum momento da
viagem, e ele sabia que não demoraria muito. A mensagem foi dada aos pais de
Arwen, a Bolkuriana Mawreen e seu marido, o desconfiado Multer, pareceram não
engolir a história de que o Rei convocara Arwen, mas não se atreviam a
contrariar Merlon, não se pode chamar um dos homens mais conhecidos e corajosos
de Andor de mentiroso sem provar as consequências. Serena por outro lado jamais
desconfiaria de Merlon, e com ela a conversa foi completamente diferente.
Serena sabia desde o
começo qual seria o destino de Nogard, isso em parte acalmava o seu coração e
em parte tornava suas noites angustiantes, ela nutria uma esperança de que se
tudo desse certo, e o garoto cumprisse aquilo que Merlon dizia ele ter nascido
para fazer, pudesse desfazer o mal que ela fez a Andor no passado, porém ela
temia também o pior, se tudo aquilo não desse certo e se seu filho fosse ferido
em batalha estaria sozinha novamente, dividida como da outra vez. Suas noites
eram de preces aos Dragões, suas manhãs eram acompanhadas de lágrimas e suas
tardes eram regadas por pensamentos e lembranças, de seu marido, de como eram
felizes, de como viviam bem, da maneira como serviram Andor e o povo e de como
ele a magoou, uma mágoa tão profunda quanto o leito de um rio. A conversa com
Merlon não levou mais do que alguns minutos, Serena perdoou Nogard, por aquilo
que ele havia pedido perdão, mas em seu coração ela estava dividida novamente,
queria seu filho perto mas também queria os homens à salvo, um dilema que
parecia fadado a ela, geração após geração.
Merlon guardara seus
cavalos e os tratara rapidamente, então ele pegou um deles e se encaminhou para
o Sudoeste, o mesmo cavalo branco e magricela que carregava a carruagem de
Merlon, chamava-se Sofhlax e era filho de um Gravas com uma égua comum, era
branco como as nuvens e era magro, tão magro que surpreendia por aguentar um
homem tão alto e corpulento quanto Merlon em sua sela.
Merlon agora se
aproximava da Praça Jaoh’ndar, vinha cavalgando seu cavalo magricela a muito
tempo, esperava chegar rápido a Porto Vitória, ali, talvez, encontraria uma
oportunidade de falar, a voz do Rei estava cada vez mais sussurrante, e já não
atingia toda a Andor como antigamente, Merlon era uma chance, um rugido em meio
ao barulho da algazarra.
Merlon subia uma
pequena colina, repleta de rosas-de-fogo, uma planta muito bela porém mortal ao
toque, vitimava amantes em suas tentativas de impressionar donzelas, desde o
começo dos tempos, do outro lado estaria a pequena praça e suas altas casas e
torres.
- Pois é,
Decadência, meu caro Sofhlax ainda esta um tanto forte não acha? – perguntou
Merlon.
Obviamente a
cicatriz não respondeu, mas ele escutou.
- Ah deixe de
bobagens, existe sangue Gravas correndo nas veias desse velho fantasma dos
cavalos, não há falta de apetite quando se trata de batalhas, certo Sofhlax?.
O cavalo balançou a
cabeça de um lado para o outro, aparentava ser uma forma negativa mas Merlon
não viu isso.
- Isso garoto,
vamos, o Sul te pertence.
E continuaram
subindo a colina, a capa cinza de Merlon dançava ao vento, seus longos cabelos
e sua barba comprida eram sacudidos em todas as direções, ao longe podia-se ver
a Sombra Sem Fim, uma mancha negra nos céus, o Falso Reino. Merlon encarou as
tempestades negras e vermelhas entre as nuvens de sombra, com uma grossa
sobrancelha erguida, então desviou o olhar, a névoa negra não merecia olhares,
apenas desprezo.
No topo da colina
Merlon pode ver Praça Jaoh’ndar, ou pelo menos aquilo que dela restou. A
pequena vila estava completamente queimada, suas belas torres e altas casas
estavam destruídas e derrubadas por todo o local, a antiga homenagem ao
guerreiro Jeh’khgari que derrotou e expulsou Dorean se perdera, em meio a
tabuas queimadas e ferro retorcido. Merlon passou os olhos pelo local de cima
da colina e não viu nenhum Vitorino, aqueles que eram de Porto Vitória. No
lugar da antiga vila, que Merlon tanto desejava ainda ver, havia um enorme acampamento,
mas não se via o simbolo de Porto Vitória, um barco branco sobre fundo cinza,
em nenhuma das bandeirolas e dos estandartes, eles ostentavam uma estrela negra
sobre um fundo branco, o símbolo de Força dos Homens. Merlon não pode acreditar
no que estava vendo, ele pretendia desencorajar a loucura dos homens daquela
região, alistá-los para uma aliança e rumarem para o Grande Paredão de
Montanhas, a fim de conterem a marcha dos Bulks. A guerra entre as cidades não
só havia começado como parecia estar em curso a um bom tempo, estranhou o fato
de Lago do Rei não enviar um mensageiro a Pescoço dos Homens, mas logo sua
estranheza foi curada, ao lado da Estrela Negra estava a Torre Cinza sobre
fundo azul-marinho, o símbolo de Lago do Rei.
- Chegamos tarde, Decadência,
chegamos atrasados. - disse Merlon com pesar.
E desceu a colina em
direção ao acampamento, galopando a toda velocidade, tanto quanto o magro
Sofhlax pôde leva-lo. Chegou ao acampamento e foi recebido por dois lanceiros,
com suas lanças voltadas para o rosto de Merlon, Sofhlax e Decadência.
- Alto velho, quem
vem lá? – perguntou um dos lanceiros, vestia uma leve armadura de couro,
esbranquiçada e com uma estrela negra no peito, seu elmo era redondo e possuía
três pontas sobre a cabeça.
- Sou eu, lanceiro,
sou eu quem vem e sou eu quem vai, sou eu quem põe juízo na cabeça dos homens
estúpidos como você – disse Merlon, desdenhando do lanceiro que estava
acampando onde não devia -, não me identifico para os que estão trilhando o
caminho errado, e nem deixo que o trilhem, derrubo-lhes do cavalo e tomo-lhes
as lanças, esta trilhando este caminho neste exato momento e eu não vejo
cavalos entre as suas pernas. – então Merlon moveu-se rápido como um leopardo e
tomou as lanças dos guardas, segurando-as pela lâmina mas sem se cortar um
centímetro sequer. Atirou-as para trás – Ora que infortúnio, peguem suas lanças
soldados, como defenderão o acampamento com as mãos nuas.
Os soldados estavam
surpresos e irritados, correram em direção a suas lanças e Merlon correu em
direção ao acampamento.
Passou por muitas
tendas, homens estavam usando armaduras leves e prontos para qualquer
imprevisto, enquanto ele passava eles acenavam com a cabeça e o cumprimentavam,
sem saber que o verdadeiro imprevisto era ele próprio, muitos homens estavam
bebendo, ou para criarem coragem ou por acharem que a guerra já estava vencida.
Merlon avistou um alto mastro, era o mastro da maior tenda de todo o
acampamento, e nele o estandarte da Estrela Negra e da Torre Cinza dividiam lugar.
Mais guardas estavam
ali na entrada, novamente eram dois lanceiros, mas dessa vez Merlon decidiu
polpar palavras, investiu contra os soldados, que abandonaram a entrada da
tenda tão rapidamente quanto puderam, e Merlon entrou, com seu cavalo e sua cicatriz.
A tenda era ampla e
alta, caberiam cinquenta homens ali sem desconforto, era branca e possuía
estrelas negras pintadas em seu teto, seu mastro era decorado com inúmeras
estrelas entalhadas na madeira e alguns estandartes enfeitavam a tenda, senhores
que possuíam algumas terras ou ouro, Bolers e sua águia verde sobre fundo
amarelo, Viroon e sua víbora vermelha sobre fundo verde, os Mafil, que eram
parentes do castelão de Lago do Rei, ostentavam duas flechas brancas cruzadas
sobre fundo negro, e havia também outras casas menores.
Ali estavam Lorde
Doufas, Senhor de Força dos homens, Lorde Mafilhem, Castelão de Lago do Rei,
Vagros, parente e primeiro general dos exércitos de Doufas, e uma dezena de
pequenos senhores, todos em volta de uma mesa com um mapa e todos com olhos
arregalados e bocas trêmulas, perante a surpresa. Merlon era um homem alto e
corpulento, sobre seu Sofhlax parecia maior ainda, sua barba e seus cabelos
compridos eram brancos como a neve e seu manto cobria as ancas da sua montaria.
Olhou sério para todos, um olhar amedrontador, abriu os braços e gritou.
- Que espécie de
loucura é essa aqui?
Os homens se
entreolharam sem ter resposta aparente, tomados pela surpresa e pelo medo,
exceto Lorde Doufas, que mantinha-se calmo, o Lorde usava uma armadura Branca
com uma enorme estrela negra sobre o peito, não usava um elmo, não teria
serventia ali na tenda, rodeado de senhores lambedores de botas, que fariam
qualquer coisa para ganhar a simpatia do sério e sistemático Lorde Doufas. Tinha
os cabelos brancos e bem curtos, possuía um nariz fino e um queixo insolente
que apontava para cima.
- Os caval... –
começou o primeiro general, Vagros Relonis, irmão da senhora de Força dos
Homens, mas foi interrompido por Merlon.
- Não se atreva a
dar ordens a mim, parente de um Lorde, Andor só tem um General e você não é
este homem. – disse Merlon, e olhou para Mafilhein, Senhor de Lago do Rei –
Ficou sem mensageiros nos últimos tempos Castelão? Ou ficou sem a lealdade?
Onde foi parar o título de Protetor do Lago que lhe coube outrora? – a ultima
pergunta foi ácida e direta, havia uma resposta mas ela não seria dada da mesma
forma direta.
- Entenda, Merlon,
são outros tempos, Andor esta se matando, dia após dia. – disse Mafilhein, em
suas sedas, o Lorde era um antigo mestre da moeda de Arelon, e não se metia em
armaduras nem em campos de batalha.
- E vocês estão
ajudando Andor e se matar mais depressa! Vocês senhores – disse Merlon
apontando para os senhores vassalos de Força dos Homens – retirem-se
imediatamente, a conversa que teremos aqui não é de seu interesse.
Todos os senhores
menores se levantaram para sair, mas Doufas pediu para que se sentassem
novamente.
- Com qual direito
vem a minha tenda, em meio a uma guerra, ainda por cima montado a cavalo, indo
contra as regras de moradia de Andor, contra um anfitrião que lhe recebe em sua
moradia, nesse caso eu, ameaça meu general e intimida meus convidados, com qual
direito você derruba estas cortesias e leis perante homens de bem, ferreiro? –
perguntou Lorde Doufas. Sua pergunta era amarga e sem calor algum, o homem era
direto mas também era calculista, felizmente Merlon o conhecia desde quando ele
ainda chorava num berço de choupana.
- Não ha tempo para
discussões, sua cidade esta em perigo, como já deve saber através de Mafilhein,
uma centena de Bulks treinados e equipados, armados e com sede de sangue e
carne atravessam o Paredão nesse instante – Sofhlax bufava e raspava o casco no
chão da tenda -, vejo muitos homens aqui hoje Doufas, se ainda conheço um pouco
sobre números sua cidade esta pobremente guarnecida nesse momento. – disse
Merlon, como um General experiente.
Lorde Doufas deu um
sorriso tão rápido quanto um piscar de olhos, voltou a sua seriedade um segundo
depois, ele sabia que Merlon tinha razão, mas nunca deixaria tal concordância
sair de seus lábios.
- Não tenho
preocupações vindas do Sul, ferreiro, bato à porta de um velho urso gordo e
cansado, com oito mil soldados para tomar-lhe a cidade, não tenho exércitos a
minha porta, não queimaram minhas vilas, quem deve ter medo aqui é Mooner, e
não eu.
Então é isso, os anos passaram mas você nunca esqueceu aquele dia, este
homem continua rancoroso e envergonhado, pensou Merlon. Merlon sabia o
sentido daquela guerra, uma divergência de muitos anos atrás, entre Doufas e
Mooner, uma divergência que envolvia sangue e família, algo pessoal demais para
Merlon se envolver, mas ele não poderia deixar as coisas continuarem rumando
para a morte e a desgraça, já era tristeza demais guardar segredos e encobrir
erros de outras pessoas, e tudo isso pelos homens que um dia foram seus
inimigos. Merlon encarou cada um dos senhores naquela tenda, todos assustados e
compelidos, a maioria deles não sabia o real motivo daquilo, o restante
simplesmente não se importava. Merlon começou a desconfiar de que não mudaria
aqueles homens. Não ali. Não naquela tenda.
- Doufas, não sou
mais um simples ferreiro, fui restituído, agora sou General Merlon novamente –
nesse momento os poucos senhores que estavam desdenhando da situação, com os
braços cruzados sob o peito, descruzaram seus braços e ficaram apreensivos -,
venho aqui hoje em nome de Arelon, venho em nome do Rei.
Vagros pareceu
confuso, e antes que Lorde Doufas pudesse dizer algo se adiantou.
- Mostre-me o
documento! – exigiu o primeiro general Vagros, com uma mão estendida.
Merlon teve vontade
rir da sua cara, mas aquele não era o momento para sorrisos.
- Esta aqui, em
minha bainha senhor primeiro general, deseja vê-la, então venha pega-la! – e
tocou o punho de Mitrhiilden.
Vagros era um tolo,
mas não era nenhum covarde, ainda mais na frente de todos aqueles senhores, os
quais ele esperava governar algum dia.
- Acompanhe-me até
lá fora. – disse o primeiro general de Doufas.
Mas foi impedido, a
mão de Lorde Doufas tocou seu punho e o homem parou imediatamente.
- Que seja então,
General Merlon, porém creio que tenha perdido seu tempo vindo aqui esta manhã,
existem coisas em curso, coisas das quais você não faz parte, portanto não pode
interferir, Força dos Homens irá promover um cerco à cidade do velho urso em
menos de três dias, eles são mais numerosos do que nós mas não tem estratégia
de guerra em solo, sabe disso, Porto Vitória domina os mares mas em terra são
simples construtores de barcos e fazedores de redes.
Merlon entendeu a
mensagem, Lorde Doufas não deixaria o velho Mooner Ruivurso escapar de suas
Estrelas Negras, não desejou em momento algum chegar àquele ponto mas não havia
outras alternativas, se Lorde Doufas dominasse Porto Vitória perderia o auxilio
das duas cidades, e isso não ia de acordo com os seus planos.
Não desejei isso, nem desejo, mas juro pelos Dragões, não deixarei que
o reino caia, e o reino não é uma cidade apenas, lamentou-se Merlon,
pensando naquilo que estava prestes a fazer, Porto Vitória era uma das maiores
cidades de Andor, nela haviam mais de quinze mil soldados, infantaria treinada
e preparada para os mares e sua fúria, em solo no entanto não eram muito
habilidosos.
Merlon encarou
Doufas com seu olhar mais sério, o Lorde estava na outra ponta da mesa, Merlon
incitou seu magro meio-gravas para cima do banco na extremidade da mesa, o
cavalo foi caminhando vagarosamente, subiu no banco e logo depois subiu na
mesa, os senhores levantaram-se e encostaram suas costas nas paredes de tecido
da tenda, Lorde Doufas porém ficou imóvel, assistindo o velho se aproximar.
Sofhlax parou a poucos metros do Lorde.
- É esta a sua
ultima palavra, Doufas? – perguntou Merlon sem cerimonias.
O lorde acenou com a
cabeça e todos seus senhores desembainharam suas espadas.
- Não velho, irei
prosseguir com a campanha, mas esta não é a minha ultima palavra, e quanto a
você, quais são suas ultimas palavras? – Perguntou Doufas, sua boca era uma
fina linha de desgosto.
- Sorte. – respondeu
Merlon.
- O que quer dizer
com isso velho? – perguntou o precipitado Vagros.
- Que desejo-lhes
sorte na batalha, Estrelas Negras, e que o exército de Mooner, as Marés de
Outono, não os alcance, pois quando elas o fizerem vocês estarão condenados.
Deu-se o silêncio
por algum instante, o vento sacudia e balançava a lona da tenda, então os
senhores começaram a sorrir, a rir e a gargalhar como loucos, Merlon encarava
Doufas. Merlon, Doufas e Mafilhein eram os únicos que ainda mantinham a compostura
na tenda, parte por serem os mais experientes parte por saberem o que
aconteceria.
- Eles não tem
disciplina militar em solo, como você acha que as inofensivas Marés de Outono
alcançarão as Estrelas Negras? As águas não sabem voar, velho ferreiro. –
provocou Vagros novamente, e novamente foi precipitado.
- Por que eu os
liderarei, parente de um Lorde, e até onde eu sei, e eu sei de muitas coisas,
tão pouco as estrelas sabem nadar. – respondeu Merlon, calando a algazarra.
Virou seu cavalo
magricela e se retirou da tenda, deixando para trás uma enorme montanha de
senhores enfurecidos.
Doufas acenou para
que seus homens não o detivessem.
- Espero que esteja
pronta decadência – disse o velho, enquanto passeava com Sofhlax tranquilamente
pelo acampamento, em direção a Porto Vitória -, é provável que nos banhemos de
sangue outra vez.
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