quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Uma Música de Treva e Sangue - Prólogo: Besta de Sangue


A sonora melodia da caixa de música instaura-se sob o recinto, e quase sinto seu sabor mágico – algo parecido com mel, ou cerejas mergulhadas em sangue; sabor de infância vestida em negro, uma música de ninar para demônios.

– Eu me sinto tão... sozinho. Você sabe como é - não teria como não saber. Viveu tantas vidas e, quando nasci, já era tão vivido quanto fui depois de muito tempo. Como dizer...

Sou esse que vos fala, meus amigos. Um vampiro de tantos séculos sob os ombros, esmagado por seu peso. Tantos invernos e verões esses ossos de vidro abrigaram e, no entanto, cá estou, inseguro como uma criança diante do desconhecido. À minha frente, o vampiro conhecido como Thorn, ou o querido amigo Espinho, famigerado por títulos de longa data como Rei dos Espinhos e Mestre das Ilusões, faz o papel de ouvinte. Um bom irmão, esse Thorn. Atrevo-me a dizer que, em dados momentos, sua sapiência resgatou-me da absoluta escuridão, salvou-me do devoramento traiçoeiro por minhas próprias presas – entendam como quiser. Em mais de uma ocasião, devo minha não-desistência a esse bruxo de tantas faces.


– Conte-me o que lhe aflige, irmão, e contratarei uma meretriz francesa de exótica sensualidade de acordo com teus tormentos. Eu disse contratar? Quis dizer roubarmos. E por francesa, quis dizer com ascendência asiática, ruiva como as línguas do Inferno.

Sentado sob um caixão ora barulhento, ora mortuário em silêncio, Thorn denota a pose de um cavaleiro lorde nos tempos modernos, ligado ao conjunto clássico vitoriano perpetrado pelo medo justificado do esquecimento daquilo que é belo e elegante - mas sem se passar por antiquado; sua persuasão visual é diabólica, assim como todas as suas demais também são. A capa lilás tecida a ouro alinha-lhe os ombros largos de maneira austera, ganhando corpo sob um gibão sombrio, ornamentado por serpentes e labaredas de rubi até a altura do colarinho largo. Seus dedos são um ciclo vicioso de anéis – ouro branco, paládio, irídio, um turbilhão de luminescência para olhos despreparados -, e percorrem o ar como se orquestrassem alguma sinfonia funesta e pessoal, contrariando a mão enluvada que permanece imóvel e misteriosa sob o colo de pernas cruzadas. As calças estufadas de seda terminam por botinas cavalhariças de cano alto até a altura dos joelhos, o conjunto disputando com o negro profundo dos cabelos alinhados à altura dos ombros retos. Sua expressão é impassível, talhada em branco, mas tranquilizadora e bem vinda, e os olhos, de sangue, absorvem a luz e gritam por trevas.

– Eu sinto esse gosto... esse gosto amargo, que não me abandona. Preciso ser amado. Senão, irei morrer. Perdoe meu teatralismo, mas lhe expresso isso da maneira como me assombra.

Por alguns instantes, Thorn parece-me uma escultura, uma pintura congelada em tela viva, e sua expressão revela-se brevemente num vislumbre de desapontamento com amargura. Mas, como sempre, é inútil tentar desvendá-la, sequer estudá-la – mérito comum àquele cujas palavras referidas à morte de toda sua própria família confunde-se entre o luto e o gozo eternos. Por fim, cospe algo, tão displicente que me sinto como um de seus escravos.

– Ocupe sua mente, meu amigo. Livros. Livros são o segredo para tudo. A Bíblia. Interprete-a, molde suas próprias conjecturas sobre seus textos, embasadas nos costumes de tão remota época. Ou, é claro, se não estiver muito apto ao masoquismo teólogo-literário... podemos falar sobre isso.

Fito-o com certa incredulidade magoada, agarrando-me ao estofado vintage da poltrona napoleônica, as garras marcando a moldura de marfim como um quadro-negro.

– Livros não consolariam minha dor, sequer supririam metade desse vazio – por mais que eu lhes deva muitas alegrias e inspirações. E, claro, conhecimento. Conhecimento acima de tudo. Com bem deve saber, aliás. Sinto sua jocosidade, irmão, e isso me dá vontade de atracar-se contra ti num duelo de feras a sangue frio e sem raciocínio sob uma roda de fogo. E demônios, cercados dos mais inferiores, como plateia vil.

Thorn se despe de sua única peça de luva, revelando uma mão mais branca que o tecido que a envolvia. Entre um canino afiado como aço, rasga-a, fazendo-a sangrar um composto semelhante à bronze moído sob um frasco com reflexos mímicos e variáveis – ora rosa de arco-íris, ora branco como nossa pele ou negro como nossos cabelos – ou, ainda, vermelho como nossos olhos no ápice do desejo. Apesar disso, não me sinto ignorado – nem por mil anos de seu silêncio.

– Ah, mas para que esse dramalhão? Se não te conhecesse, diria que é uma camponesa disfarçada – uma depois de ser molestada contra a vontade por mais de um fanfarrão a fedor de cerveja e azeite, repetidas vezes - zomba, irritantemente travesso.

Reteso-me em meu assento. Sinto a vontade de envolver minhas mãos sob seu pescoço rígido e fechá-las num aperto de morte, mas antes que o fizesse já teria sido empalado por um de seus truques capciosos. Além de quê, nunca realmente o faria. Amo-o demais para isso, e ele, de alguma forma, bem o sabe. Diria que por sussurros alheios por uma ou outra de suas muitas fontes, pois não é um ingênuo de acreditar em palavras ditas apenas. Ou isso, ou estou envenenado demais por meu próprio veneno para ter tais impressões.

– Gostaria que levasse minha angústia a sério, Thorn. Não é fácil, quem dirá agradável, revelar a fragilidade por trás das máscaras de ferro, mesmo para um irmão como você.

– Meu amigo, apenas relaxe; está em mãos experientes e muito competentes. Quando foi que lhe deixei à mercê de seus fantasmas? Tanto de mim para ti quanto de ti para mim, precisamos um do outro, vez ou outra na eternidade – e essas vezes são cruciais. Ademais, nessa instância, o que realmente precisa é de uma bebida. Uma forte, e a certa, um aperitivo para o prato principal – já bem havia me preparado, ou pensou que esse caixão irrequieto a cá estou fosse simplesmente por acaso?

– Irmão, compreenda meu pranto! Sou um monstro, não me envergonho disso, pelo contrário! Mas parte de mim, uma parte insistente de mim, persiste em buscar o amor, essa maldita! E, quando o faz, eventualmente cultivo a traição, e o turbilhão de mágoas se volta para mim, navalhando-me, ceifando a ilusão e revelando a podridão por trás do querubim! - explodo, então, e seus rubis negros tornam-se vermelhos, me emprestando um pouco de serenidade.

– Amou recentemente, não foi? - ouve-se um grito repentino vindo do caixão de carvalho negro, mas com uma pancada oca de seu cetro de basalto, Thorn faz o silêncio voltar ao sepulcro, como que magicamente – por que não? A melodia sobe uma nota, algo familiar entre Mágico de Oz e alguma sinfonia de Beethoven.

– Sim, e lhe feri. Deixei uma cicatriz profunda, onde havia um coração sem marcas. Eu não poderia imaginar, não dessa vez. Em minha concepção, nos aventurávamos numa ópera sem fim, mas, para ela, éramos prometidos. Estou ficando cego e perdido, logo não conseguirei diferenciar o doce do amargo, e minha penumbra se transformará num caos de luz e treva - respondo-lhe, aturdido como um suicida. Serenidade revela-se insuficiente.

– É um tolo, Deli. Mas não me entenda mal - essa é uma das razões que me leva a lhe amar tanto. Agora, para os infernos. Beba e, com o perdão do meu francês, simplesmente um homérico foda-se a tudo, meu irmão!

Thorn estende a taça cristalina para mim. Penso em praguejar, exigir mais de sua amizade e incendiar-lhe a mansão; mas acabo por aceitá-la, hesitante – ou algo me faz pensar isso. O licor dança nas bordas transparentes, convidando-me, tudo negro, um líquido escuro, maldito, com caveiras serpenteantes debochando de mim através de sorrisos sem carne e pele. “Beba; venha”, e assim, obediente como um do rebanho, o faço; tomo o cristal entre lábios secos e sorvo de seu conteúdo frio e cortante até lhe zerar. Um clarão, a lembrança do Big-Bang, e os sentidos se confundem - tato e paladar parecem ter pouca diferença, talvez nenhuma. Um gosto de morte, um odor de chuva, os júbilos distantes de uma ciranda de crianças, ou diabretes, mas, ainda assim, todos são preto e branco.

– Será que a sanidade me abandona? Tantas viradas de séculos, adaptando-me às mudanças radicais da constante evolução humana, seus costumes, a tecnologia, lidando com fardos e dores e bebendo de fontes que abalariam o mais esclarecido e transcendental dos sábios. Perpétuo, futilmente vilanesco e, ainda assim, abatido por uma banalidade dessas... o amor? - vejo-me num breve monólogo, a amargura autodestrutiva; pois estou agora na escuridão, sozinho, onde antes havia luz e companhia.

– Meu amigo - estou cortando suas raízes, pois são profundas. De tempos em tempos, elas emergem, e nem com o mais voraz dos fogos, o mais imortal entre eles, elas findariam por completo. Portanto, aqui estou, desumanizando-o uma vez mais. Não como um boneco ou como um animal, mas como uma criatura acima de qualquer outra além dos deuses, de qualquer homem ou rato; um demônio, um assassino, um amante - uma criança da eternidade com poder, conhecimento e maldade, brincando com maldições, aninhando-se aos braços do tempo e zombando da morte enquanto brinda à sua mesa com uma centena de vidas em taça.

Fito para onde a voz ecoa, grave, imponente, milenar. É Thorn - e um alívio me toma ao notar que posso percebê-lo. Passo por um corredor confuso e desconexo, com duendes de profissões variadas - de carpinteiros e cozinheiros a forjadores e transformistas - e Abraham Lincoln na Lua entoando canções diabólicas e depravadas, um ritual há muito esquecido - mas sou incapaz de tocá-los e dissecá-los. O vampiro está no final do caminho composto por rosas e crânios de bebês, sentado em seu trono garboso, mas vejo somente suas mãos, olhos e presas. O presidente parece desapontado ao ser degolado pelo próprio Jesus ou Charles Mason, e seu carrasco acena para mim com o troféu decapitado e um sorriso amarelo. Por fim, alcanço-lhe, e as cortinas gastas daquele mundo de miragens doentes são abaixadas até a cintura de seus pantomimeiros desgraçados.

– Agora, meu amigo, sua recompensa.

Calmo, quase distante, a mão sem cor de Thorn empunha um gládio acabado em ouro fino e cravejado por invulgares espinhos rubros. A lâmina prateada, ao mesmo que reluz contra as chamas verdes dos castiçais aromáticos e a luz cega dos lustres centenários, pressiona-se contra algo – um pescoço. Quase tão alvo quanto a pele de um de nós, logo toma-se por um vermelho rosado, provocado pela pressão da lâmina. É um pescoço de mulher, comprido e formoso, sem falhas, e, encimado sob ele, um rosto de boneca ao leite, desenhado com lábios de morango, os olhos grandes de safira desmanchando-se numa corrente obsoleta de maquiagem negra pela bochechas lisas e redondas – um borrão grosseiro na arte final, mas bem concebido. Os cabelos de ébano são puxados com severidade por uma mão oculta, provavelmente de Thorn, enterrada entre o negrume das madeixas, e o desalinho pende irregularmente numa cascata escura, envolvendo os seios brancos e firmes, destacados sob o decote generoso do vestido - não, uma camisola, branca e de bordas suaves, quase transparente como sua pele, cujos vasos de tons frios se fazem visíveis na fartura de uma coxa ou seio. Manchas de cobre percorrem o tecido em ruína aqui e ali, em pinceladas de sangue seco.

– Faça-o logo – diz uma voz, fraca, quase um sussurro – a minha. Sei que a visão da mulher grita e choraminga, apela por sua vida, vomita questões vãs e clama por um Deus que não lhe salvará. Mas nada ouço. Apenas almejo, os segundos seguintes, nos quais o sangue jorrará, maculando-me com o carmim de sua morte. Seus olhos denunciam o medo, e engolfo de uma quantidade inebriante com desespero abissal. Extasiado, ajoelho sob o tapete persa – uma ligação com o mundo material -, às portas das honrarias de meu irmão sanguinário. Minhas íris dão lugar a glóbulos febris e terríveis, e minhas presas multiplicam-se numa bocarra demoníaca, uma armadilha de ursos – ou em termo mais adequado, uma armadilha de tudo que vive e pode morrer. “Faça-o, depressa. Depressa!”; enfim, o aço rasga a carne. Um grito bastardo de dor e medo, rompendo a barreira de meu transe, um instante apenas. Da fenda aberta na jugular da donzela de branco, uma rajada vermelha urra, esvaindo o sacrifício em espasmos intensos, os últimos protestos do corpo vazio contidos no abraço da morte de Thorn, a sensualidade dando lugar ao grotesco – e sou banhado na luxúria dos vampiros. Fecho os olhos, imerso em meu torpor, recebendo da recompensa; sorvo e absorvo do morno da vida, renovando-me no banho vermelho. Sorrio, com uma feição de besta, um sorriso dos infernos com gosto de ferrugem, meu corpo pingando vulgar, trêmulo de excitação.

– Vê? - a voz de Thorn me puxa do abismo, e sinto o calor fluir – Vida em morte, o contraste prazeroso do contrato vampírico.

Ébrio de sangue vivo, sou o monstro de que tanto me orgulho, e o amor apresenta-se como um capricho. Aceito-o como um gracejo das muitas mãos do destino e as guardo, ceifadas, em mangas ocultas que acredito só eu possuir – e revelo-me indomável, como um andarilho da noite-sem-vida tem de ser.

– A resposta para os problemas mais complexos, muitas vezes, são as soluções mais singelas, meu amigo. Lá, no fundo imemoriável, entre sussurros e segredos, nada passam do que o reflexo distorcido da própria simplicidade.


(...)


… o corpo pende morto num canto – é o que é agora, não mais que um corpo -, e resolvemos jogar uma partida de xadrez para encerrar a noite sem pormenores muito extravagantes. Não importa o resultado, quem ganha ou perde – a nota atinge Mozart, e a reconheço como uma das sinfonias favoritas de meu caro companheiro das sombras. Ao ter meu rei tombado, não consigo evitar de derrubar as outras peças num esbarrão enérgico, soltando uma exclamação exaltada, contida, para um imperturbado Thorn:

– Obrigado, amigo Espinho!

– Apenas faça o mesmo por mim, quando vier lhe chorar também - pois é preciso ser lembrado de quem realmente é quando se vive muito. Como qualquer um que um dia recebera o sopro da vida, não somos infalíveis.

– … a propósito, qual era seu nome? Refiro-me à dona do sangue que seca e racha sob minhas vestes.

– Sarina. Mas acho que essa só nós entenderemos.

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