quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Uma Música de Treva e Sangue - Capítulo V: Deadly Double



Varsóvia, Polônia – meados de 1943.

- Herr Komandant,  Herr Kommandant! Veja só, quase deixamos esses ratos escaparem! 

O oficial da Waffen SS trazia dois prisioneiros aos calcanhares – um casal de gêmeos, ruivos e sardentos, trajados com vestimentas maltrapilhas de camponeses, alguns números abaixo do ideal para suas meias medidas. Empurrava-os como animais doentes, dando-lhes coronhadas repetidas contra a nuca, pressionando-os. Ao que parecia, eram os últimos judeus a se lidar naquela pequena aldeia dos confins da Varsóvia, saqueada e reduzida a entulho pela divisão comandada pelo impetuoso Untersturmführer.

Sob a chuva fraca que caia nas colinas de centelho, os nazistas executavam a Solução Final.

- Traga-os até mim, não antes de imediatamente. Já nos estendemos demais nessa imundice - pretendo chegar a tempo de ver a apresentação de Elisabeth no Pube Cafe, e seria bom para todas as partes que se recordassem -  a seda rubra de Herr Kommandant dava brilho ao negro lustroso de seu cetro, tal como à Totenkopf de prata em seu topo, aparentemente num ciclo de vício e pompa – talvez pretendesse reproduzir o gelo de seus olhos, vaidoso como todo líder do Terceiro Reich.

- Andem, polacos cretinos! Adiante trocar algumas breves palavras com Herr Kommandant. Vai ser divertido, sim, vai.
- Dessa vez, ao serem pancados com o rifle, ambos os irmãos desabaram, exauridos. Choramingavam, inutilmente, procurando a mão um do outro em seus últimos momentos. Os demais soldados, um total de quatro, estouraram em gargalhadas, e o mais embriagado, Mark, recebeu uma bronca coletiva ao derramar o conhaque do único cantil do grupo. 

- Oh, não se aguentam de pé? Eles não se aguentam de pé, que engraçado! Vamos, cretinos. Não me envergonhem na frente do pelotão, ou sofrerão por isso – o soldado ameaçou rispidamente, conseguindo um lamento choroso ao queimar algumas sardas com a bituca do cigarro. 

- Dê-lhes de um pouco de seu Pervitin, Fousein, vamos. Não vai te fazer falta, é um caso perdido – provocou o maior da equipe, Krauzer, cujas mãos poderiam envolver a cabeça de um dos gêmeos folgadamente. Por trás da fumaça da garrafa térmica, parecia ligeiramente menos bronco.
- Cale a boca, Krauzer!
- Escrevi uma carta essa semana pedindo um novo estoque. Espero não estar pedindo o impossível – comentou um Mark desolado, para ninguém em especial.

- Ei , Fousein, talvez devêssemos rastejá-los – opinou outro oficial, Sternen, ensaiando uma risada estridente e ansiosa entre o dente que lhe faltava. Achegou-se ao companheiro de tropa, puxando o  mais encardido pelo couro cabeludo até ouvi-lo rasgar - o choro fez seus olhos de fuinha brilharem. - Como vermes que são, seria apropriado, não? Certo, Herr Kommandant?
- O que quer que seja, pelo Fuhrer! Contanto que o façam agora - o Comandante então polia suas botas de bico de aço, e delas limpou o excesso daquilo que as maculava – sangue.

Sem delongas, os prisioneiros foram arrastados sob o charco de meio quarteirão da trilha campal até o Untersturmführer, forçado-lhes grama e raízes boca adentro; Fousein puxava um pelos braços, enquanto Sternen sentia prazer em fazê-lo pelo cabelo – mas não demorou muito e foi obrigado a trazê-lo pelos tornozelos quando, aos prantos e espasmos do infortunado, fios e couro desprenderam-se sob a grossura de suas luvas. Antes de afastar-se, Sternen ainda fez questão de chutar-los nas costelas.   

- Muito bem; de pé – o Comandante ordenou aos moribundos, indiferente à morbidez de seu abatimento. Folheava as páginas de um livro de cabeceira – Poemas de Shakespeare -, e jogou-o por cima do ombro para assisti-lhes; divertia-o mais. - Lixo inglês.

Custosamente, os irmãos obedeceram à ordem, usando um ao outro como apoio para tal. Quando puseram-se de pé, por fim, um dos SS simulou palmas e reverências extravagantes.  
- Pois bem. Quais são seus nomes, ratos? - ele concentrou um olhar particularmente clínico em um dos meninos, estudando-o. 

Entreolharam-se nervosamente, incertos do que o tirano gostaria de ouvir de suas bocas rachadas – talvez o sangramento não lhe bastasse.

O Comandante respirou profundamente - não obteve resposta. 

- Por que dificultam meu trabalho? Vejam, pivetes, estamos escrevendo as linhas da História aqui, e precisamos de tinta - sangue judeu, como o de vocês e todos os putos abatidos nessa chafurda de vila. Acham correto, diante de tão importante obra, enfadar-nos com uma banalidade de pique-e-esconde? Francamente...  

O vento uivou desalentado, e Herr Kommandante interrompeu sua lamentação: com o corpo rijo do cetro, disferiu uma pancada cheia e precisa contra a clavícula frágil de um dos pequenos, debulhando-o em dor ao parti-la como madeira velha. Os joelhos fracos renderam-se no ato, dobrando-se trépidos sob o gramado orvalhado, e o irmão vacilou um passo hesitante e contido em sua direção – um erro de amor fraternal. A prata do crânio nazista descreveu um arco de sangue contra o céu nebuloso, e, no instante seguinte, o cenho do garoto curvado estava severamente rompido, lançando-o às cegas num início de convulsão.  As mãos, ao cobrirem a ruína do rosto, mergulharam-se de vermelho, e esse predominava-se a cada jorro sobre o cobre apagado do cabelo, afogando-o. 

- Ademais, eu tenho um compromisso no Pube Cafe com um linda senhorita, portanto... cumpram de uma vez sua parte para com a Solução Final; morram – o nazista cuspiu, literalmente, saboreando a tela de medo e angústia que o outro era enquanto secava os lábios na manga espessa do casaco; atormentado pela impotência, relutante em digerir a mutilação do irmão, mal notou quando o cano da Beretta foi apontado entre seus olhos. O Comandante sorriu maldosamente, beijando o SS da gola alta do uniforme - e apertou o gatilho.   

O cheiro de pólvora preencheu o ar frio e carregado tão repentinamente quanto a explosão ensurdecedora da munição – e o tiro concentrado perfurou a testa do ruivo, roubando-lhe um último suspiro. As contas verdes reviraram-se nas órbitas, sumindo e dando lugar ao branco absoluto, e, assim que a trilha vermelha serpentou pelas sardas, o corpo magro pendeu sem vida sob a terra molhada com um baque esmorecido.  A fumaça cinzenta da capsula assomava-se à fantasmagórica nuvem branca das bocas dos oficiais nazistas, que fervorosamente ovacionaram seu comandante como um herói de guerra, dando corpo à névoa maldita e seguimento ao espetáculo de ódio e morte do Reich. Dotado de uma sede arrebatada por violência, o Comandante esvaziou o cartucho da Beretta – atirou uma, duas, três vezes, cada tiro acompanhando o berro do anterior, ressonando infindavelmente sua música assassina, a respiração entrecortada de prazer e satisfação, rompendo carne e osso. Suas pálpebras tremelicavam. Êxtase, um orgasmo doentio. Mas ele atirou no que já estava morto. 

- Bravo, Mein Kommandant! Bravo! - bradou Fousein ao superior, tomando o corpo destruído por buracos entre os braços, dançando energicamente com seu parceiro fúnebre o que seria uma valsa parca e macabra. Os demais o acompanharam com vivas e zombações, entre goles de conhaque e tragadas de um tabaco compartilhado. O Comandante sibilou uma praga qualquer, lançando um olhar desdenhoso para a árvore repleta de mulheres e velhos desnudos enforcados, assim como para a pilha de crianças mortas. As moscas já os rodeavam, e o sangue acumulava-se nas mãos, deixando-as negras. “Chega dessa dança” - com um gemido impaciente, pôs a haste longa do cetro no caminho do soldado ébrio, fazendo-o desabar estupidamente no gramado com o corpo sem vida. 

- Não temos tempo para bobagens sem fundamento, Fousein – mas um bom comandante sabe como recompensar seus homens; um desses gêmeos judeus era garota, caso não tenham notado – como bem percebi que não notaram – observou o Comandante pelo canto da boca enquanto trocava o pente, apontando com as cinzas do cigarro para o ruivo - a ruiva - que ainda engasgava no próprio sangue. - Deixei-a viva por isso mesmo, por ser mulher. Revezem-na, vamos, sou um bom Comandante, não podem dizer que não mereço minha Cruz de Ferro. Mas não se demorem, contarei cinco minutos de cada, não mais – ele puxou o relógio de bolso mergulhado em ouro pela corrente, e sentou displicentemente sob o cadáver dançante, cruzando as pernas comodamente. - E sem brigas, sejam civilizados – não somos como esses animais, por favor, não me façam lembrá-los.

Todos trocaram olhares confusos. A seus olhos, não lhes parecia uma garota, realmente - senão não teria passado ilesa por entre suas pernas. Mas logo o sexo dominou-lhes a mente, ou, como diria a propaganda do partido, a “força da juventude”. Não havia tempo para conjecturas. Herr Kommandante era sempre preciso.

- Quem diria, uma garota... até nisso são um problema. Mas bem, cinco minutos. É justamente do que preciso. Vou te ensinar um pouco de disciplina, porca judia – Fousein adiantou-se, rastejando no solo até a agonizante gêmea.

- Posso ser o último. Não terei como não gozar assim – troçou uma voz esganiçada, Sternen, desafivelando o cinto. 

- Será que ela se importa se chamá-la de mamãe? Ou se queimar-lhe os mamilos? - Krauzer divagou, tomando o cantil de um Mark corado e demasiadamente alegre; “peitos”, murmurava apenas.

Entretanto, uma sinfonia inesperada cancelou a balbúrdia, e os nazistas viram-se alarmados: um piano começou a tocar, a palmos do horizonte, emprestando uma melodia bela e sensível àquele infame lusco-fusco de crueldade. Haviam limpado a aldeia, tornado-a terra-de-ninguém – ou assim julgavam -, e isso certamente era inesperado. Frustrado, o Comandante vacilou os dedos no gatilho, quase acertando um soldado acomodado além das calças com a ideia de estupro e morte. A bala se perdeu no campo de centeio, e um corvo levantou voo, grasnando insultos

- Louvada seja a sagrada Alemanha! Esses malditos judeus não se acabam?

- Pode ser algum de nossos homens. Não pode? - arriscou alguém.

- Nicht, somos os últimos. Adiantei a operação dispensando o corpo em peso quando os reconhecedores reportaram os números. Esses dois já eram uma surpresa desagradável por si só - o quepe do Comandante oscilou em sua cabeleireira prateada, obrigando-o a acalentar-se. Às vezes, parecia o próprio Führer em suas explosões, como costumavam zombar pelas costas - pelas costas era mais prudente.

- É Bach?

- Não seja idiota... é... Chopin. Ou talvez Vivaldi.

- Pelas bolas do Führer, é Mozart! Bastardos inglórios, não reconhecem a verdadeira arte! - o Comandante puxou seu lenço perfumado de um dos muitos bolsos, e aspirou as cerejas profundamente, remetendo-se a fantasias de óperas épicas e virgens arianas de tranças douradas e túnicas transparentes. - Deveriam chafurdar na lama com os judeus, eu juro. Aliás, isso é imperdoável – um polaco atrever-se a tocar Mozart. Um pecado. Eu poderia quebrar cada um de seus dedos, claro, mas o tempo é meu inimigo aqui também - lamentável, seria prazeroso. 

- Devemos...
- Nicht, cuidem de seus afazeres, senhores. Apreciem a autopsia. Pestes como essa devem ser abstidas dos mil anos dourados pelo melhor do Reich. Vocês são os abutres, eu, o lobo.

O Comandante adiantou-se.

Cauteloso, caminhou ao compasso da ária misteriosa pelo campo até onde as notas nasciam, e os centeios indicaram-lhe magicamente sua origem com caudas de bruma: um casebre de madeira nitidamente abandonado, molestado por anos de cupins e fungos. Um deboche suicida, era o que pensava. De arma em punho, circundava o cetro habilmente de dedo em dedo, descrevendo círculos arrogantes no ar. Cada célula fervia em seu sangue ariano, e sentiu as faces corarem, excitadas sob a fumaça fria que escapava dos lábios enviesados – a música ajudava, exercia um poder místico sobre si, desde criança, uma maldição divina; Eine Kleine Nachtmusik, reconhecera, acompanhando os movimentos com a mão enluvada, incorporando um maestro genocida. Tocou a porta pútrida e decadente com a caveira de prata, marcando-a de sangue, e essa rangeu um gemido pestilento ao abrir-se santuário adentro -  expulsava aquela criança pervertida de suas paredes centenárias. 

O pianista aguardava-o num eixo penumbral.

- Bonjorno – cumprimentou em sotaque carregado, quase caricato, oculto pela dança de sombras de uma cortina tétrica. Apenas as luvas brancas e a parte inferior do rosto faziam-se visíveis. Era fino e macilento, como se empoado.

- Toca bem, devo dizer. Espantoso um judeu ser capaz de tamanha harmonia – o Comandante recostou-se à soleira lascada, focando a mira naquilo que julgou ser o meio das pernas do sujeito, entre a virilha e o escroto. O clique da trava estalou em eco, fazendo as aranhas correrem pelas teias. O gelo dos olhos fuzilava-o. “Não, a cabeça”. Subiu a arma um pouco mais, confiando no instinto, pois a escuridão lhe traia a visão. - Italiano?

- Merci – ele continuou, dedilhando as teclas energicamente, ignorando a mão negra da morte.  - Não, Herr Kommandante – se me permitir a intimidade. Sou muitas coisas em muitos lugares, e as tenho sido por muitos anos. Nacionalidades não me limitam, sinto - aquilo apagou o sorriso cínico do Comandante, que azedou-se num timbre de desprezo. Nunca apreciara jogos de palavras. Particularmente quando feito por um judeu.


- É nisso que são bons, não? Fazer dinheiro. Suponho que tem viajado muito, prostituindo as sinfonias de Mozart. Fornicando com as valquírias de Wagner – retorquiu, cantando sua vitória – a Beretta sempre o deixava poderoso. 

- A vulgaridade bucólica de Wagner não me agrada. Mas tenho boas lembranças do belo prodígio Amadeus. Aceita uma bebida? Algo gelado, o Bowle. Ou talvez prefira conhaque, Pernod?

O pianista realmente desagradara  Untersturmführer - judeus mais inteligentes e cultos do que ele abalavam seu orgulho. "Mas uma bala costuma resolver essas", pensou "e tantas outras". 

- Dizem que alguns homens perdem o juízo diante da morte. Até hoje, só tinha visto velhos se mijarem e cagarem – retesou o dedo no gatilho. - Mozart poderá descansar em seu túmulo, e me agradecerá na vida-além com um camarote privilegiado para seu espetáculo de ninfas escandinavas. Seus dias de prostituição acabaram, imundo.

O sino da sinagoga soou, e Mozart chegou em seu clímax –  então, dor e desespero acompanharam seu refrão. Os gritos em coro dos oficiais cortaram a sonata e os pensamentos vilanescos de Herr Kommandant, e esse virou-se de súbito para a campina. 

Nos centeios, ele contemplou o terror.

Fousein, trepado sob a garota judia, tinha o pescoço torcido ao contrário, e a face deformada, entre mãos pequenas, fulminava o Comandante com um grito mudo de pavor; os gêmeos voltavam à vida, saltando sobre seus homens com garras e presas dantescas, possuídos pelas próprias valquírias de Wagner no Terceiro Ato; um pesadelo de olhos carmesins no purgatório nazista. Krauzer esvaziava a munição de sua MG42 automática, lançando maldições contra a névoa vermelha e venenosa que os cercava, renunciando ao deus que os abandonara. Sussurrava em suas mentes, a névoa maldita, abrindo caminho às foices contra temores profundos e segredos vergonhosos.

“Poupem munição, svinkas. Fariam melhor uso se as usasse em si mesmos. Seria uma morte menos violenta. Não que não estejamos nos divertindo.”  
A risada demoníaca e infantil dos gêmeos repercutia distorcidamente da penumbra sobrenatural como uma legião de diabretes travessos, estilhaçando alma e sanidade com agulhas de sangue. Mergulhado em inominável desolação, Krauzer rendeu-se à loucura, caindo sem fôlego sob os membros, seu coração congelado. Vislumbrou um sinistro sorriso de gumes, e então o nada: incontáveis presas caninas emergiram da neblina, fechando-se em torno do crânio como uma armadilha, catapultando-o do solo. A cabeça desprendeu-se do corpo, e era o seu fim.
- Ora, e eu pensei que quisessem dançar, meninos! - zombou uma voz feminina em meio a arruaça sangrenta – a ruiva. A fenda do ferimento em prata se acimava do queixo até as sobrancelhas, e do nariz arrebitado apenas restavam os orifícios caveirosos. Capturou um soldado fujão pelo braço, Mark, abraçando-o mortalmente pela cintura. Com um puxão fugaz, desmembrou-o com facilidade assombrosa. Os campos foscos tornaram-se vermelhos com a chuva de sangue, e ela livrou-se do membro amputado como um trapo. - Não me diga que desconhecia esse movimento?
- N-não! Por favor... - suplicou Mark, vagamente, como se lutasse para acordar de um sonho terrível.
- Que falta de compasso, soldado... - murmurou contra o ouvido alheio, uma brincadeira de sedução e maldade adocicando a tortura. O vapor e cheiro forte de urina emergiram no vento frio, varando as camadas espessas do uniforme nazista. Numa epifania de piedade, ela afundou a correnteza de caninos contra a carne, atracando-se sob o soldado como uma besta faminta – e, assim, devorou-o até o coração parar.     

 Sternen, em sua fuga ensandecida do inferno, tropeçou sob os restos de um tronco nu e, quando atingiu a planície, as pernas lhe faltavam. Sentiu a região fantasma arder, e as chamas consumiam-no por dentro, gritando-o até a voz sumir. Condenado, procurou chorosamente pela arma – qualquer uma, contanto que pudesse dar cabo do sofrimento mais depressa. Rastejando sobre o próprio vômito, às tateadas encontrou botinas familiares – grifadas com as iniciais SS, características do uniforme nazi, ele atreveu-se a um sorriso amarelo. Fez questão de escalar até a Colt sob o cinto do Wallfen, mas, quando ergueu o rosto ao alcançá-la, a visão sofregou-lhe um gemido que não pareceu nem de perto humano: os gêmeos posavam, a sua frente, garbosos e cheios de si uniformizados com o negro da Waffen SS - qualquer sinal de ferimento pelas torturas anteriores inexistia; demônios, pensou. Dispostos lado a lado, como um espelho, as sardas crispavam-se de satisfação, denunciando seu jubilo. O nazista travou o cano da Colt entre os dentes, e rezou.  

- Você não – disse o pequeno ruivo dos infernos, e a irmã complementou, sua voz uma nota teatral de sadismo:

- Baratas merecem ser esmagadas.
- Os caninos vampíricos reluziram pelo canto dos lábios rosados, e a névoa se densificou, assumindo os traços de cada um dos aldeões massacrados pelos SS, talhados em pânico. A Colt sumiu com um chute homicida, levando junto mão e parte inferior do rosto do oficial como um borrão vermelho. A língua pendeu pela carcaça superior do maxilar afora como um tapete molhado de músculo e sangue e, numa marcha lenta, porém voraz, os coturnos laminados terminaram por pisoteá-lo. Sternen foi reduzido a uma massa sangrenta e sem forma. 
Restava Herr Comandante.  

 (...)

- Por Deus! M-monstros, demônios! Para o Inferno!
De repente, a loucura. 

Tragado para um cenário onde a caça em potencial era ele, o Comandante vociferava, suas palavras despidas da mínima coesão. Já não parecia mais tão imponente, e, mais de uma vez, cogitou atirar na própria cabeça para acordar. Esmagado pela realidade de um pesadelo de vampiros, seus sentidos lhe traíram. Tremeu em espasmos, quase deixando a Beretta escapar-lhe entre os dedos, e a vista perdeu desfocou-se, míope de um minuto para outro. Ouvia o próprio coração bombar a ponto de apagar-lhe, e o suor brotava, ignorando as estalactites refletidas sob a insígnia do quepe.

 O grito de horror coadjuvou a explosão do tambor, e o nazista disparou contra o demônio, negando as lágrimas.

Um tiro lhe bastou, fazendo jus à sua Cruz de Ferro - cravou uma bala certeira contra a face da criatura. O impacto fê-la voar para as escadas inferiores do porão atrás de si, e silhuetas ancestrais dançaram pelo teto nesse momento; o tempo parou. Não. O vampiro, na realidade, havia parado – em pleno ar, flutuava sobre os degraus, e sua gargalhada grave reverberou como um cântico nefasto pelo frágil casebre. O rosto lívido revelou-se das sombras - a cápsula da Beretta prendia-se entre as presas demoníacas, esmagada, e a fumaça espessa da pólvora era tragada como um fumo.

- Deus não pode ouvi-lo, Comandante. Mas eu posso absolvê-lo de seus pecados.

- Morra – por favor, morra – o orgulhoso Comandante se viu suplicando. Ajoelhou, derrotado por algo que não podia conceber como real. Seu trabalho era caçar judeus. Mas e o daquela aberração? Qual seu propósito? Catatônico, sentiu o bafo gelado contra pescoço, roubando alguns preciosos anos de vida – e, fustigado por horripilantes calafrios, tudo se apagou como a chama fraca de uma vela derretida. 

(…)

- Herr Kommandant. Que satisfação recebê-lo em nossos aposentos improvisados. 

Acordou, relutante, ao som de uma voz masculina desconhecida. Serena e complacente, detinha um sotaque que não conseguiu identificar muito bem – mas pode sentir camadas sutis de Leste Europeu. Pelo arrepio que percorreu-lhe da nuca ralhada à dor das nádegas, deu-se conta de sua nudez - e completa vulnerabilidade.  Ao tentar se mover, não foi capaz. Perscrutou o ambiente nervosamente, forçando-se em vão e, quando o tecido das costas se rompeu junto com um berro aflito, foi obrigado a desistir. Correntes de ferro o prendiam, algumas cozidas à carne, serpeadas à uma haste que se erguia de seu trono frio e depressivo ao teto. O olfato, pelo aroma adocicado de videiras, denunciou-lhe a natureza de seu cativeiro: uma adega. 

Adiante, uma verdadeira távola redonda estendia-se, e quatro figuras fantasmagóricas requintavam-se em vinhos e especiarias.

Não foi um sonho.

O Comandante reconheceu os ruivos de outrora, aqueles exímios atores – as memórias atrozes do campo de centeio permaneceriam mesmo depois de sua morte. Ainda trajavam o uniforme negro da SS, debochando de sua autoridade ariana – que, ali, nada era além de uma moeda sem valor. Roupava-lhes adequadamente bem em seus corpos miúdos, e indagou-se sobre onde os conseguiram, já que suas medidas diferenciavam em demasia dos extintos nazistas. Ao trono de anéis e pilares, jazia o anfitrião misterioso: um conjunto militar Obersturmführer verde-oliva alinhado e escurecido severizava seu porte vampiresco, e a sombra do quepe destacava o escarlate dos olhos, alimentado sob a lambada de fogo dos castiçais. As mangas de folho do último demônio fechavam-se sob seu colarinho, cujo lenço de gola avoluma-se no rigor dos ombros, terminando no rosto empoado e perverso, encimado por uma peruca branca com cachos. Era o pianista. 

- Por que não se junta à refeição? Seu companheiro de tropa tem um sabor delicioso, posso lhe garantir – perguntou o anfitrião, tomando as mãos de ambos os gêmeos. Vez ou outra chamava-os de “anjos ruivos”, ou “essas belezinhas russas”.

Então, o Comandante sobressaltou-se: em uma cadeira-de-rodas rústica e enferrujada ao seu lado, nu e arruinado, encontrava-se Obersturmführer Hans Waltz – ou o que sobrara dele. Dado como desaparecido durante a investigação dos recorrentes acidentes na construção do Aeródromo de Boreham, acreditava-se que, por baixo dos panos, envolvera-se numa mancomunação conspiratória com os Aliados – mas agora Herr Kommandant sabia a verdade. Grotescamente mutilado, dos membros restava-lhe apenas o braço esquerdo, e, em diversas partes, o corpo cobria-se por faixas ou remendos costurados – como metade do rosto. A pele desbotava-se num aspecto acinzentado e inumano, e a respiração irregular e rouca falhava constantemente. Não fosse pela tatuagem de âncora em seu pescoço esfolado, reconhecê-lo seria improvável. 

- Escutem... escutem-me, por favor. Eu sou... - começou, desesperançoso.

- Não gaste saliva, Comandante. Não queremos saber seu nome. Não nos importamos com isso – o pianista interrompeu-o rispidamente, percorrendo a adega com um punhal da Waffen SS sobre as luvas. Examinava os signos rúnicos contra uma lamparina e, dado por satisfeito, simulou golpes de esgrima, cortando o ar, traçando passos. 

- O que... pretendem... comigo...

- Nós comemos nazistas, tal como humanos comem carne bovina e frango. Não é óbvio? – esclareceu a ruiva com um risinho fino e maroto, lambendo o gume afiado de uma lâmina do tamanho de seu tronco. - O uniforme serviu bem a Thorn, não?

- Bondade sua, meu morango. Ela não é sodomizável? - o vampiro à rigor militar apertou calorosamente as sardas dos gêmeos entre os dedos, mimando-os como um pais faz a suas crianças fofas. - Esse dois flocos de fogo, ambos são. Obrigado, Mãe-Rússia. Mas é como disse.
- À sombra  das colunas e nereidas de mármore, o vampiro Thorn cortou à prata, conforme a etiqueta manda, um generoso pedaço de carne caramelada sob a porcelana branca,  levando-o aos lábios sem cor. Mastigou a porção demoradamente, num ritual de 33 mordidas – a idade de Cristo. Seus lábios coraram.
- A adrenalina deixa a carne com um sabor exótico, sabia? Por isso ainda o mantemos vivo. Não é crueldade, é uma questão de receita de família séculos e século. Certo, Deli?
- Certo, certo – o pianista contornou o encosto de pregos e correntes que aprisionavam o Comandante, rodeando-o como um predador calculista. Passeava a lâmina gelada por suas pálpebras nervosas, descendo ameaçadoramente pelo pomo-de-adão, riscando as omoplatas. Ao alcançar a pélvis, conseguiu fazê-lo pular sob o assento, alarmado. Suava frio. -Vocês, nazistas, são divertidos - são diferentes, como dizem. Mas não literalmente, afinal.

- Seria piegas – Thorn continuou -, quero que me entenda, se tratássemos vocês, nazis, como os demais. Equilibramos um pouco a balança: à sua maneira, os nazistas tratam seus semelhantes como animais, por sua vez, fazemos-lhes o mesmo à nossa própria, assando e preparando sua carne; como porcos – ele sorriu malignamente, e as luzes da adega subterrânea vacilaram. - Atuamos como um carma. Tiramos vidas, sim, mas há uma poesia de sangue por trás, uma beleza milenar de amor e ódio – poder. E o que é a vida senão um jogo de gato e rato? Vocês, crianças, não passam de psicopatas gratuitos – e gostamos dos nossos flambados e acompanhados de vinho francês.

- O banquete dos vampiros se seguia; prata e sangue, fatiando a carne, mastigando e engolindo, bebendo de Obersturmführer Hans Waltz. 

- Em nossa fábula, Comandante, os nazistas possuem um outro papel – o pianista concluiu com um sussurro sombrio da capa. Versava uma música tântrica e diabólica entre os lábios maquilados, ostentando-a durante sua marcha de calças justas ao fundo da adega. Por trás de um barril couraçado, ele sumiu - mas os assovios de nervos distorcidos permaneceram. Exclamou seu sonoro “voilá!”, e, na volta, um som metálico e doloroso acompanhou-no pelo cascalho.

- Como os três porquinhos – aludiu o gêmeo com sua graça infernal e angélica de presas e sardas – fogo e gelo. O negrume do uniforme aviva o cobre das madeixas, acendendo-o. Por debaixo da mesa, a bota da irmã aventurava-se em suas pernas.

Quando a lâmina corpulenta estendeu seus dentes serrilhados de ferrugem e sangue seco sob a ponta de orelha que lhe sobrava, Herr Kommandant desabou: o pianista buscara uma motosserra. O vampiro puxou a corrente energicamente, fazendo o motor gritar – mas o Comandante gritou mais alto.  

- N-nicht! Deus, bom Deus! Suplico, deixem-me viver! 

- Eu disse que seria melhor amordaçá-lo – muxoxou a pequena, inflando as bochechas num bico.

- Faz parte, pintarroxo. De nada adianta derramar o sangue de mil bastardos se não pudermos desfrutar da unânime sinfonia de dor e desespero – argumentou Thorn com sua filosofia milenar.

- Hm, acho que fiquei molhada... tem toda razão, meu Duque... - ela pressionou a bota contra o sexo do irmão com mais anseio, fazendo-o contrair-se em seu lugar.  

- O motor roncava e explodia, falhando logo em seguida, aquela. O pianista repetia e tornava a repetir o processo, mas o resultado era sempre o mesmo. Os berros do Comandante podiam ser ouvidos da superfície, afastando os corvos para longe de seu banquete de cadáveres. A expectativa mortal torturava-o.

- Nazistas! Seus... seus problemas são com nazistas, claro! Eu posso.. desafiliar-me ao partido... eu juro... nunca mais me veriam com uma insígnia nazista... até beijaria judeus! - ele tentou uma brincadeira afetada para com os vampiros, e sua risada saiu tão torta e doente que, na cega tentativa de conquistar-lhes a simpatia de sangue, soou como um ganido leproso.

- Não diga bobagens, Hugo Boss é um dos melhores frutos dessa juventude Hitleriana; não o fosse, não estaríamos confeccionados à moda nazi – esclareceu o anfitrião, anelando uma taça com vinho. - Elegância e horror, como não vestir feito luvas?

- Pode continuar com suas insígnias, Comandante. E imagino que beijar judias não deve ser um problema quando o estupro é recorrente – lembrou-lhe a ruiva. 

- Thorn e Deli adoram contratos. O que tinha dito sobre se encontrar com uma bela senhorita no Pube Cafe, Herr Kommandant? - o pequeno gêmeo instigou, e seus olhos vermelhos trovaram um verso maléfico.

O Comandante descorou de pálido para fosco, aproximando-se do cadavérico Obersturmführer. Não lhe ocorrera que rumariam a tortura psicológica para esse caminho – eram tempos obscuros de guerra, e amar alguém seria inconsequente. Mas nunca dissera isso a Elisabeth, em nenhuma das muitas vezes em que partilharam a mesma cama. 

- Um sacrifício? Que interessante. Adoro trocas equivalentes – o anfitrião juntou os dedos animosamente, recostando o queixo sobre o fecho – era um vampiro sempre disposto a firmar novos acordos e colecionar assinaturas de contratos, como o próprio Diabo. 

- Nicht... nicht... Elisabeth não, deixem-na...

- Oh my, desenterramos sua empatia? - desdenhou Deli, recostando a serra sobre o colo de Hans. O único segundo em que o motor bombeou foi suficiente para o sangue esguichar e açoitar o Comandante, lembrando-lhe dos horrores que o aguardavam.

Foi o bastante para convencer o tenente do Reich – seu luto interrompido prolongou-se, e precipitou-o por Elisabeth.

- Oh Deus! Elisabeth Novak se apresentará por toda a noite de hoje no Club Cafe! Acharão as entradas VIPs com acesso a seu camarote nos bolsos de meu casaco! Beleza, dinheiro, influência – é neta de um poderoso Sturmbannführer e uma das amantes do próprio Führer, uma prisioneira muito mais valiosa! Peguem-na em meu lugar, mas poupem-me viver, por favor!

- Sabemos disso tudo, Herr Kommandant. – confessou um dos ruivos,  num gracejo de deleite. -  E um pouquinho mais – mas não muito. Mas foi uma bela defesa.

- S-abem? - estava confuso.

- É sempre divertido ouvi-los sentenciar-se pela própria boca – sussurrou o pianista, tão logo cravando as presas afiadas no pescoço do Comandante - e sugou-o. A pulsação pulou, gritou, descompassando aos poucos, como uma garoa melancólica, até atingir o estado de semi-vida.

- Eu aceito sua oferta, Comandante. Pouparei sua vida desgraçada, sim, por que não? Mas, em troca... será... como vocês vulgares dizem? Oh, sim. Em troca, será a minha putinha particular – ele riu-se, furando o próprio pulso enquanto assistia o aterrorizado prisioneiro ser esvaziado. Selou os lábios na gota que brotou. - Sua Elisabeth pode ser uma das meretrizes num cassino muito promissor que administramos em Chicago. Conhecemos os portes das moça. Um cão de caça do Reich não poderia exigir menos do que uma celebridade em seus lençóis, suponho.

O vampiro Thorn tomou o cetro de ébano e prata, e, inspirando soberba imortal, valsou seu voo sobrenatural e absoluto até o Comandante caído. Às suas costas, o pianista deitava-se à mesa, só galhofas, livre do fardo da tortura, delirando nas nuvens coloridas do nirvana – suas maçãs coravam-se com o sangue recém bebido sob a carregada maquiagem de nobre colonial, e ele entregava-se ao gozo. Um a um, os ruivos montaram sobre si - o menino sentou-se ao colo, e a menina aconchegou-se reversalmente em seu corpo relaxado, abraçando o rosto embriagado com o ventre. Rompiam os bordados e fios de ouro com as unhas afiadas, em busca do líquido precioso que lhe escorria dos lábios vermelhos até onde as roupas escondiam.

-  Herr Kommandant... tão pouco justo para um servo de sangue... - refletiu o anfitrião soturno.

Desceu a caveira de prata das marcas inchadas do beijo do vampiro até a virilha do nazista, repousando-a ali por um tempo. Seus contornos faciais eram tão brandos e neutros que, em alguns momentos, o nazi pensou que se apiedaria – bastou-lhe em sua perdição para nutrir um sentimento positivo pelo vampiro, uma ilusão estocolmica no precipício do fim. Como se lesse sua mente, Thorn sorriu – e sua máscara caiu num breve lampejo de treva, revelando a faceta negra e horrorosa de chifres e rugas por trás da androgenia de anjo. Ergueu o bastão acima do quepe, como uma espada, e desceu-o com uma trovoada contra as coxas nuas do homem, fraturando ambos os fêmures expostamente. O cetro, com a fúria do golpe, partiu-se, e a explosão de lascas cegou-lhe um dos olhos azuis. O Comandante tentou gritar, mas suas cordas vocais falharam em doloroso rompante, sufocando-o num acesso de asma. Com a metade da caveira de prata, o vampiro abriu caminhou entre as pernas inválidas. 

- Sabe o que vem agora, não? Partilho de um sádico prazer com um Conde que governou a Valáquia no século XV. Só sentirá uma dor agonizante no início... meio... e fim...

A expressão de Herr Kommandant, ao ouvir aquele prólogo maldito, anulou-se. Não havia dor, pânico, raiva, tristeza. Talvez o torpor da bruxaria ajudasse – as veias perfuradas pelo pianista ardiam, alucinando-o, e, não raro, sentia-se distante da vida. Ouvindo o chamado, seu olho ileso percorreu por uma amurada escura e cheia de ratos; e ali concentrou-se. Sobre suas correntes e estacas, havia uma travessa de barro com as sobras do banquete – e outros anteriores -, e, atrelado à Estrela-de-Davi e marcado a fogo, lia-se: “Herr Kommandant”. Compreendeu. Eles reduziriam-no ao mais baixo dos vermes.


(...)


- Estou entediada.

- Eu confundo fome com tédio. 
As línguas gêmeas percorreram pelas linhas de sangue até a intimidade, e, contra aquele mastro de veias e prazer, ambos perfuraram seus caninos de vampiro – uma ejaculação vermelha veio.

Deli limitou-se a sussurrar, enterrando os dedos nos fios ruivos enquanto, em sua luxúria proibida, remetia-se a tempos de masmorras e dragões. E aias virgens – justificava seu visual rebuscado pela nostalgia dos velhos e novos tempos, acumulada como o pó de sua biblioteca no continente esquecido.

- Ah, Glen e Glenda – um amor especial entre irmãos. Muito especial. E todo para mim.

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