Capítulo
22 – Fantasmas
Eles estavam na
Passagem, já não galopavam mais, montavam os cavalos mas se locomoviam
vagarosamente, os Ponta Lancenses estavam tensos e rígidos como suas lanças,
atentos a qualquer movimento em ambos os lados da Passagem. As montanhas eram
um emaranhado de picos, com muitas passagens, várias rachaduras e caminhos, de
onde saia uma inquietante névoa, que era carregada pelos ventos que fazia ali.
Nogard ganhou uma
longa capa de Jih’ndo, para protege-lo do frio, era uma capa de couro de cervo,
sem ornamentos nem acabamento, mas era extremamente quente e confortável. Arwen
também ganhou uma, embora fosse menor era mais aveludada, Jih’ndo contou que
era feita da pele de muitos coelhos, era clara como as nuvens e Arwen gostou
muito do presente.
A Passagem das
Montanhas era conhecida por seus ventos fortíssimos, que desciam das montanhas
do norte e ganhavam força no caminho estreito.
Nogard seguia em seu
Arkas, com Arwen na garupa. Guillar montava seu cavalo, estava à esquerda dos
jovens, o Bardo Bêbado reparou que o garoto protegia os olhos do vento forte, e
sorriu.
- Rancabarba. –
disse Guillar, sem mais nem menos.
Arwen e Nogard
viraram-se para o bardo.
- Arranca o quê ? –
Perguntou Arwen.
- Não é arranca, é
Rancabarba, é o nome que se dá a esse vento que vocês sentem nos ossos, um
vento frio e veloz.
- Não sabia que os
ventos tinham nome. – disse Nogard, lutando contra os cabelos que batiam em seu
rosto, devido aos ventos extremamente velozes.
- E não tem – disse
Jih’ndo, que estava do lado direito deles -, apenas esse vento possui nome, e
poucos são os que o conhecem, e isso muito me intriga senhor Guillar, conhece a
lenda Banedúim de Rancabarba?
Guillar pigarreou,
pegou seu cantil e bebeu, como fazia aparentemente a todo momento, exceto é
claro quando estava sem bebidas, nessas ocasiões ele estava pedindo mais a
Jih’ndo.
- Como eu já disse
meu Senhor, já andei por muitos lugares e conheço muitas coisas, essa lenda é
apenas mais uma.
Jih’ndo sorriu,
estava completamente certo de que Guillar estava escondendo algo dele, mas
gostava da companhia do velho beberrão e decidiu não perguntar mais, não agora.
- Conte-nos essa tal
lenda, senhor Guillar, por favor. – pediu Nogard.
Guillar deu outro
gole, limpou a boca com a crina do cavalo, algo que fez Nogard rir
vigorosamente, e começou a contar, a lenda de Rancabarba.
- Essa é uma lenda
Banedúim, de muitos anos atrás. Havia um homem, um excelente guerreiro,
Rancabarba era seu nome e ele mantinha essa fama com orgulho, toda vez que
Rancabarba derrotava um inimigo ele cortava fora sua barba, e como os Banedúim
possuíam longas barbas não era difícil ele encontrar alguma para arrancar.
Rancabarba também possuía uma barba, afinal de contas também era um Banedúim,
sua barba era longa e castanha, dizia-se que a barba de Rancabarba era a maior
e mais volumosa barba dentre todos os homens, e ela era motivo de inveja e
admiração. Um certo dia no entanto, não se sabe o motivo, os ventos ficaram
realmente ferozes nessa passagem, e a estrada foi fechada, ninguém poderia
passar até que os ventos diminuíssem mas Rancabarba era teimoso, e orgulhoso,
acima de tudo, decidiu então enfrentar os ventos e atravessar a passagem. No
entanto quem chegou nas montanhas não era Rancabarba, era um sujeito
completamente diferente.
Contou Guillar e fez
uma pausa para um outro gole de vinho.
- Quem chegou foi um
homem de rosto liso, sem nenhum fio de cabelo na cabeça e muita vergonha
estampada em seu rosto. Mas era ele mesmo, Rancabarba, que descobriu que os
ventos do Norte eram mais fortes do que a teimosia de um velho guerreiro. O
apelidaram então de Barbarrancada, e assim ele foi conhecido por muitos anos.
Aos ventos, que tocam vocês hoje, foi concedido o nome de Rancabarba, pois ele
acabou com uma barba que nenhum homem jamais conseguiu cortar.
Nogard assobiou
longamente.
- Devia estar
ventando realmente forte naquele dia.
- Bom, mas isso é
apenas uma lenda, não se sabe se Barbarrancada existiu de fato. – disse Jih’ndo
– E me parece que os ventos, por mais forte que sejam, não poderiam arrancar
uma barba, ou mesmo cabelos.
- Mas que ele deve
ter ficado muito engraçado não se pode negar. – disse Arwen, e todos sorriram,
até mesmo Jih’ndo.
- Quietos! - disse
Grum, se abaixando ao lado do cavalo - Ali, naquelas formações. – e apontou
para um local acima, nas montanhas.
Por um momento eles
esqueceram que estavam atravessando um local cheio de perigos, exceto os Ponta
Lancenses, que mantiveram sua postura e sua vigilância, enquanto Nogard e seus
amigos riam. Agora no entanto não parecia que seria divertido, na encosta da
montanha havia um homem sentado, estava quase invisível em meio às rochas,
vestia trapos e carregava uma espada de madeira, muito gasta e podre, em sua
outra mão ele carregava um objeto estranho, Nogard estreitou os olhos e pode
ver, era uma concha do mar.
Quando o homem os
viu, Grum deu uma ordem.
- Lanças e Espadas,
todos!
Os ataques dos
Fantasmas ocorriam sempre ao anoitecer, e sempre próximo de Pontas de Lanças,
mas o grupo estava na metade do caminho, era estranho que eles aparecessem ali
e aquela hora do dia.
O homem se levantou,
sua barba e seus cabelos eram cinzentos como as rochas, levou a concha aos
lábios e soprou. Um som muito alto tomou conta da Passagem, batia em todas as
pedras e ranhuras da montanha e ganhava força, ecoando por toda a estrada,
Nogard não soube dizer se era o eco ou outras conchas respondendo o chamado
daquela primeira. Subitamente o som parou, de uma só vez, assim como todos os
ecos e respostas. Algumas sombras começaram a se mover nas passagens entre as
pedras das montanhas, homens, que ao longe pareciam gigantes, começaram a
emergir da montanha. Todos eram altos e barbudos, vestiam trapos, roupas
surradas e rasgadas, completamente sujas de lama e neve, alguns tinham a barba
completamente congelada, como um enorme bloco de gelo, traziam espadas de
madeira e machados de pedra, uma ou outra lança era vista ali, lanças simples
feitas de madeira e com suas pontas endurecidas pelo fogo.
Começaram a descer,
em direção ao grupo.
Rapidamente espadas
foram distribuídas entre os homens de Jih’ndo, o próprio Jih’ndo tinha sua
arma, escondida sob sua sela, uma pequena faca de duas lâminas, como se dois
punhais tivessem sido colocados juntos, uma arma completamente estranha para
Nogard, que já tinha visto muitas armas diferentes em Ferro Forte.
- Preciso de uma
espada, agora! – disse Arwen, estes homens não são Bulks mas preciso lutar
contra meus medos.
- Acalme-se mocinha –
disse Grum -, nenhuma mulher vai segurar uma arma próximo de Pontas de Lanças,
ainda mais uma criança.
Arwen abriu a boca
para falar mas Nogard foi mais rápido.
- Torne a insultá-la
e farei com que se arrependa amargamente, não seja um tolo, estamos cercados
por muitos homens, todos estão armados e parecem ser perigosos, arrume uma
espada para Arwen agora ou eu mesmo o farei. – disse Nogard, sem pensar no que
estava dizendo, pelos Dragões o que deu em mim.
Guillar fitou o
garoto e pensou, Rovãn? Mas nesta idade? Este garoto é realmente uma peça única
da história de Andor.
Grum ficou tão irado
que suas pálpebras saltavam e tremiam, se aproximou de Nogar e lançou um olhar
ao garoto que dizia que aquilo não acabaria ali, lançou sua própria espada aos pés
das crianças.
- Se matar um deles
garota, passarei a te chamar pelo nome, mas se morrer, ficará aqui na estrada,
sem nomes, pedras, honrarias ou homenagens. – Arwen desceu de Arkas e pegou a
lâmina, era de um aço muito pesado, e parecia ser extremamente afiada.
Quando a atenção foi
voltada para a estrada já era tarde demais para pensar em passar por eles
cavalgando, os homens rolavam enormes pedras da montanha acima e barravam a
passagem do grupo, não teria mais volta, precisariam lutar.
- Formar! – bradou
Grum, e seus dez Ponta Lancenses formaram uma parede de escudos, exatamente a
mesma formação que Nogard viu em frente as muralhas de Pescoço dos Homens, os
escudos dos guerreiros de Grum eram enormes e os cobriam completamente.
Nogard desceu de seu
cavalo e desembainhou sua lâmina, nesse momento os homens das montanhas se
entreolharam, eles eram Banedúim e conheciam aquela lâmina.
- Largue essa arma
garoto. – uma voz veio de uma fresta na montanha ao lado de Nogard.
Todos se viraram
para ver mas não havia nada ali, apenas a escuridão dentro da fenda e vapores
vindos das entranhas da montanha.
- Eu disse para
largar essa arma. – novamente a voz veio, desta vez do outro lado da Passagem,
parecia a mesma voz mas estava em outro lugar completamente diferente.
Nogard e os outros
ficaram confusos, olhavam para todas as direções mas não encontravam ninguém.
De repente uma sombra caiu sobre Nogard, e quando o garoto olhou para cima um
enorme homem saltava de uma rocha no alto, descia sobre ele de espada em punho.
- Eu falei para
largar!
Todos se assustaram,
Jih’ndo gritou um aviso de alerta, Guillar caiu para trás do cavalo, Arwen
gritou o nome do garoto, então todos ouviram o som, que parecia um misto de
gemido e grito de dor.
Nogard aparou o
golpe do enorme bárbaro com sua lâmina, o impacto foi tão forte que pôs o
garoto sobre um joelho, mas ele não se intimidou e se levantou novamente, as
espadas ainda se tocavam, e aquela que o bárbaro segurava não era uma espada de
madeira, tampouco de pedra, parecia muito bela e era feita de um metal
vermelho, do qual Nogard nunca havia ouvido falar antes.
- Qual o nome do
garoto que ousa roubar uma herança de meu povo? – perguntou o enorme bárbaro,
seus cabelos e sua barba estavam muito sujos de neve e gelo, e ele trazia um
tapa-olho que lhe cobria o olho esquerdo, suas botas eram um enorme amontoado
de couros amarrados com raízes de plantas.
Nogard olhou no
fundo do olho do seu novo inimigo, sério e compenetrado como acontecia às vezes
com o garoto.
- Aprendi de berço
que se deve apresentar antes de perguntar o nome de alguém, e pelo que sei os
ladrões aqui são vocês.
Arwen estava de boca
aberta. Guillar ainda tentava ficar de pé. Jih’ndo estava sério e segurando sua
faca de duas lâminas. Grum e seus homens ainda faziam uma parede de escudos,
mas agora voltavam-se para Nogard e o bárbaro.
Com um movimento
rápido o bárbaro girou para as costas do garoto e o agarrou, tocou sua lâmina
no pescoço de Nogard e falou em alto e bom som.
- Me chamo Marfaleon,
Marfaleon-um-olho eles dizem, sou o líder dos Fantasmas e amo aqueles que me
seguem, mas tenho um ódio profundo por meus inimigos. Sou descendente dos
verdadeiros donos dessa terra, e vou reconquistá-la um dia, nem que para isso
tenha que morrer mil mortes ou viver mil vidas. E perdi algo que magia nenhuma
trará de volta. – suspirou depois do último comentário, mas logo a fúria o
tomou novamente, olhou para Nogard – E agora, garoto insolente, irei mata-lo, e
depois a esses Jeh’khgari invasores! – e pressionou a espada contra o pescoço
de Nogard, uma fina linha de sangue escorreu.
Arkas empinou, e
resfolegou loucamente.
- Não! – gritou
Guillar, para o espanto de todos, que não conseguiam nem ao menos dizer algo, a
visão de Marfaleon era extremamente intimidadora, e apesar de ter apenas um
olho, transmitia toda sua fúria nele.
Um-olho estudou
Guillar por um momento, não parecia assustado nem surpreso, exitou apenas a
seguir adiante, mas não retirou sua espada do pescoço de Nogard.
- Não! – suplicou
Guillar novamente – Marfaleon ap... apenas, não, não faça isso, por tudo que
você acredita, espere, eu vou lhe mostrar. – e começou a tatear o solo, com
mãos trêmulas, em busca de seu saco de coisas, o encontrou e retirou sua
flauta, e então começou a tocar uma música sem palavras, como havia feito
antes.
Marfaleon olhou
Guillar de soslaio, e pode compreender o que Guillar tocava. Nogard tentou
prestar atenção mas não pôde, estava com muitas dores no pescoço arranhado, e
Um-olho torcia seu braço fortemente, os olhos do garoto se encheram de
lágrimas, mas mais uma vez ele não chorou, ele nunca chorava.
O enorme bárbaro
largou Nogard como se ele fosse um saco de feno, embainhou sua espada vermelha,
olhou em volta e bradou uma ordem no idioma mais estranho que todos ali
poderiam ter escutado.
Os bárbaros
começaram a subir a montanha novamente, indo se esconder em meio ao gelo e à
névoa.
- Podem seguir
adiante, mas não garanto que se encontrar vocês na companhia de Lancenses
novamente deixarei que vivam. – disse Marfaleon e virou as costas, para voltar
para a montanha.
Nesse momento Grum
se adiantou, passou por todos correndo de lança em punho, para atacar o grande
bárbaro pelas costas. Mas Jih’ndo o interrompeu, com seu corpo e sua lâmina
dupla.
- Afaste-se Senhor.
– disse Grum, pausadamente, marcando cada palavra, para fazer Jih’ndo pensar
duas vezes antes de atravessar seu caminho.
Jih’ndo apontou para
as costas de Grum, em direção ao Norte.
-Pontas de Lanças
fica para lá, Lorde Grum, e é para lá que estamos indo, para Pontas de Lanças.
- Existem muitas
coisas estranhas acontecendo ultimamente, não sei o que você aprendeu em
Joh’kor, mas em Jeeh’kar não lidamos com coisas mau resolvidas, tudo tem que
ser claro como água, espadas mágicas, músicas que fazem bárbaros ficarem mansos
como gatos, e esse moleque estranho que às vezes parece um velho falando, tudo
isso não é coisa de Joh’han, Senhor Jih’ndo. – Grum disse o nome com desprezo –
Espero que ainda se lembre de que lado está, Jeh’khgari do Oriente, ou riqueza
nenhuma desse mundo o salvará.
Grum mostrou os
dentes e cuspiu de lado, pegou a espada da mão de Arwen com brutalidade, a
garota reclamou e mostrou a língua, mas ele não disse mais nada, apenas saiu
marchando sobre a neve, deu uma ordem em Jeh’khgariano para seus homens, montou
e começou a seguir viagem novamente.
Arwen de pronto
retirou uma mistura de sua bolsa na sela de Arkas, e passou com todo cuidado no
pescoço arranhado de Nogard.
- Tudo bem, Nog, já
vai ficar melhor.
A mistura logo fez
efeito e o garoto parou de sentir dores.
- Obrigado Arwen.
- Obrigado por me
defender de Grum. – respondeu Arwen.
- Vamos crianças –
disse Guillar -, montem logo, quanto mais rapidamente chegarmos em Ponta de
Lanças mais rapidamente sairemos de lá.
Todos montaram e
continuaram seguindo rumo ao Norte, por entre as pedras derrubadas. Ninguém
ousava dizer uma palavra sequer, todos estavam confusos e temerosos. Nogard
olhou para trás, muito além podia-se ver a Longa Sombra, com suas nuvens negras
e tempestuosas.
Merlon, meu amigo,
por onde você anda? Por onde quer que esteja volte logo, estou confuso e
cansado, não sei mais quem sou, pensou o
garoto, lembrando as palavras do velho na Colina de Mélis.
- Nogard – chamou
Jih’ndo, que estava desmontado e agachado na neve -, acho que isso é seu.
Jih’ndo segurava o
diário de Jaoh’ndar, e folheava algumas páginas. Nogard sentiu seu sangue
congelar dentro das veias, e não era do frio que fazia ali, o garoto tentou
dizer algo mas não conseguiu.
Jih’ndo se
aproximou, e entregou o diário ao garoto.
- Tome, caiu de suas
vestes, leia-o se desejar, mas essas não são as palavras de Jaoh’ndar, ele foi
reescrito, veja, há uma nota no final.
Nogard olhou e ali
havia duas frases, a primeira estava em um idioma que Nogard não conhecia, a
segunda ele pôde ler, e ali dizia, eu Jaoh’ndar autorizo meu amigo, Merlon, a
reescrever essas memórias, para que aqueles que não compreendem o Jeh’khgariano
possam ler minhas anotações pessoais, e para que saibam como nós Jeh’khgari
cometemos um erro, invadindo uma terra de belezas infinitas e de paz duradoura.
- Quem era esse
outro Merlon? – perguntou o garoto.
Jih’ndo montou
novamente.
- Não é outro
Merlon, Nogard, é o nosso Merlon, o nosso amigo, o General de Andor.
O garoto
estava perplexo, ele sabia como era possível Jaoh’ndar ser amigo de Merlon, só
havia uma maneira disso ser verdade, já que Jaoh’ndar viveu há quase mil anos
atrás, pelos Dragões, Merlon é um Banedúim, concluiu o garoto.Encontrou algum erro, tem críticas ou sugestões?
Reaja e comente!!
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