Capítulo 27 – Lágrimas e Culpa
O dia estava um tanto escuro, mas eles já
estavam vendo as altas muralhas e as duas pontes elevadas de Angur. Merlon
estava em seu outro cavalo magricela, ele se chamava Nofhlux e era irmão de
Sofhlax. O velho ferreiro trazia em seu rosto um semblante preocupado. Tinha
seu cachimbo e sua espada presos na sela. Ao seu lado vinham Renolom e uma
figura de negro.
Renolom estava altivo em seu corcel de batalha,
completamente couraçado o Cavaleiro da Cidade brilhava como uma estrela. E a
crina de seu elmo majestoso o acompanhava. Ao seu lado vinha uma figura,
completamente vestida de negro, e com um longo véu sobre seu rosto. Era Serena,
antiga Rainha de Andor.
Serena não tinha mais os cabelos negros, agora
ela trazia suas antigas madeixas louras. Longos cabelos dourados, sem nenhum
vestígio da tinta que ali ela usou, durante mais de dez anos.
- São trinta e eu mesmo os contei, ora mas que
teimosia sem limites, pretende me deixar louco antes do tempo? – conversavam
Merlon e Decadência.
O Cavaleiro da Cidade deixou Merlon com sua
cicatriz e se voltou para Serena.
- Já sabe o que dirá para ele? – perguntou
Renolom, antigo cunhado de Serena.
A mulher estava cabisbaixa, já não via mais
sentido naquilo tudo, em alimentar um ódio e uma mágoa que se dissiparia quando
Nogard chegasse.
- E o que eu deveria dizer, Renolom? Nada que
eu diga fará o tempo voltar, nada que eu diga trará a vida daqueles que se
foram. Chorei até meus olhos secarem, e minha vontade de viver se foi como
nuvens passageiras. Mas os prantos não trazem pessoas para perto, nem lhes
entrega vida novamente. Nada jamais retornou nas lágrimas que chorei por minha
escolha equivocada. Mas foi uma escolha de mãe, uma escolha que os homens não
entendem.
- Arelom também escolheu, minha corajosa
Serena. – disse Renolom – Não deixe que esse fardo a enterre nas areias da
culpa. Não é sua culpa.
- De todo não, mas tive uma grande parcela de
culpa nisto. – disse Serena, e acariciou a crina do cavalo – Arelom não fez
aquilo por Nogard, ele diz que sim mas eu não posso acreditar, ele odiava os
Dragões com todas as suas forças, quantas noites mal dormidas ele passou,
olhando através da janela do quarto, se queixando de que ele era o verdadeiro
Rei de Andor, e não aquelas feras. – Serena arrumou as mangas e curvou os
lábios para baixo, em sinal de desprezo – Ele não almejava salvar seu filho,
ele apenas gostaria de se livrar dos Dragões, Edaliom o avisou, avisou que
aquilo teria consequências drásticas, para todos nós, mas ele não se importava,
queria apenas se ver livre dos Dragões.
Merlon estava apenas ouvindo mas decidiu que
deveria falar.
- Não o julgue, ele também sentiu pelo erro que
cometeu, e está tentando consertar ao menos aquilo que lhe cabe.
Serena encarou Merlon, com olhos semicerrados.
- Consertar?
Renolom se ajeitou na sela. Merlon olhou para a
mulher de negro.
- Nem em mil anos ele poderia desfazer o mal
que causou para essa terra, e para esses homens. Mas ele dará uma nova
esperança a Andor, algo que apenas ele pode fazer.
Serena compreendeu o que o velho dizia, espero que ele saiba o que está fazendo, se
algo acontecer ao meu filho não sei o que farei, comigo e com todos que
atravessarem o meu caminho,pensou Serena.
- Ao menos isso. – disse a mulher – Já estava
na hora daquele homem teimoso mudar. É uma lástima que seja tão tardiamente.
- Tardiamente sim – disse Merlon -, mas no
momento certo. Se nada disso tivesse acontecido, se Arelon não tivesse cometido
aquele erro, não sei se estaríamos aqui hoje. O que sei é que estamos, e que
uma nova esperança nasce, nos ombros de seu filho. Não se sinta preocupada,
olharei por ele, eu lhe dou minha palavra. – prometeu o velho General, e fez
uma reverência, com a mão sob a barba, em seu coração.
- Jamais vi você mentir, Merlon, confio em
você.
Nesse momento eles atingiram a ponte Leste.
Foram subindo calmamente, vendo logo acima Edaliom, com seu cajado, os
aguardando.
- Abram o portão Leste! – bradou o Alto-Maégi.
E recebeu os convidados. Mas não sorria nem estava contente. Parecia triste e
preocupado. – Merlon, Renolom, Senhora Serena. – disse Edaliom, fazendo uma
reverência.
Merlon acenou com a cabeça, Renolom beijou a
mão de Edaliom, e Edaliom beijou a mão de Serena. Todos desmontaram e o
Alto-Maégi os guiou até o alto castelo, um castelo que mais parecia uma
montanha com janelas. Olhos curiosos os olhavam através de frestas em janelas.
Eram os Angurianos, vendo sua rainha voltar dos mortos.
O Grande Castelo Branco possuía mais de vinte
torres, e cada torre possuía dezenas de janelas e quartos. A grande
Torre-de-Dragão de Lutheraxes ficava bem ao centro do castelo, como se
encimasse uma grande cauda de pavão, aberta em leque, com plumas de pedra.
- Por favor – disse Edaliom -, por aqui. – e
indicou a entrada do castelo, com cortesia. Duas enormes estátuas guardavam as
portas, uma era Jaoh’dar, a outra era Jaah’ndur, seu irmão, Aquele que Veio,
Capitão dos Jakar, conhecidos como os Perpétuos.
- Um momento. – pediu Merlon – Renolom,
acompanhe Serena até os aposentos de Arelom, preciso ter uma palavra com o bom
Edaliom.
Renolom assentiu e adentrou o enorme castelo
com Serena.
- Posso ajudá-lo, General? – perguntou Edaliom.
Merlon caminhou até os pés da estátua de
Jaoh’ndar, tocou seus pés de pedra, e fitou o chão com olhos tristes.
- Encontraram seu... encontraram Jaoh’ndar.
O Alto-Maégi não pode conter sua surpresa.
- O que disse?
- É exatamente isso que seus velho ouvidos
puderam ouvir. – disse Merlon – Ele foi corrompido Edaliom. O meu querido e
antigo amigo, aquele a quem eu sempre quis bem se corrompeu.
Edaliom estava chocado, não sabia quais
palavras usar, e mesmo que soubesse não poderia falar. Então ele apenas gritou,
gritou alto e em seu grito havia tristeza e lamento. Seus olhos se encheram de
lágrimas, ele atirou seu longo chapéu para longe e se sentou no chão, como se
estivesse sem forças.
- Os Postos de Sentinela caíram – continuou
Merlon -, vieram muitos Bulks do Sul, e eles eram liderados por ele, um
Sentinela o descreveu, eu jamais me esqueceria daquela armadura dourada, nem em
mil anos.
- Isso é uma tragédia! A mais terrível tragédia
que presenciei! – disse Edaliom - Foi a pena que o levou para aqueles desertos.
Como era teimoso aquele homem, se ele não fosse tão teimoso e tão bom,
talvez... talvez... ele estivesse... – tentou dizer Edaliom mas as lágrimas
silenciaram-no.
- Pena e esperança. Ele pensava que Dorean
poderia ser convertido, que poderia ser salvo das Sombras, mas ele se enganou,
e foi ludibriado por Adarom. O Mestre das Sombras não descansa, ele envenena
até os mais puros de coração, e ele não vê distinção entre Banedúim, Jakar,
Andorino ou Jeh’khgari.
Edaliom pegou seu chapéu, se apoiou em seu
cajado, e se levantou. Sua longa barba azulada voava ao vento, ele sentia uma
dor que jamais imaginou sentir, seu mundo estava desmoronando, primeiro seu Rei
estava moribundo, e agora Jaoh’ndar. Mas não podia fraquejar, não nesses dias
que viriam. Ambos sabiam que Jaoh’ndar estava perdido, aqueles que são tomados
pelas Sombras jamais se recuperam. Com o antigo herói não seria diferente.
- Vamos, está na hora. – disse Merlon.
- Tão já? – perguntou Edaliom.
-Sim meu caro, já deveríamos ter partido, o
tempo voa como o vento, um tempo de escuridão se aproxima e não devemos nos
demorar.
Merlon deu um longo assobio e seu Nofhlux veio
até ele. Edaliom também assobiou e um enorme cavalo, tão azulado quanto os
cabelos do Alto-Maégi, surgiu dos estábulos, seu nome era Maerix, e ele e
Edaliom eram velhos amigos.
Então eles cavalgaram para fora da cidade,
através do portão e por toda a extensão da longa ponte elevada.
Seus cavalos corriam como poucos, e eles eram
majestosos. Cavalgaram durante alguns dias. Edaliom iluminava a noite com seu
cajado e com sua magia. Eles eram duas figuras velozes, duas manchas que
riscavam a grama, uma cinzenta e outra azulada. Cavalgaram até não poderem
mais. Paravam para dar água aos cavalos e depois seguiam sua cavalgada
novamente. Os cascos dos cavalos quase não tocavam o solo, eles eram rápidos e
fortes, apesar de toda a magreza de Nofhlux.
Quando eles puderam avistar a Passagem das
Montanhas não puderam deixar de perceber algo. Em uma depressão do campo, aos
pés da colina, havia uma pilha de árvores mortas, alguns animais também jaziam
ali sem vida. Merlon desceu do seu cavalo e se aproximou, ajoelhou-se e tocou a
madeira e os animais. E sentiu ali algo que não gostaria de ter sentido,
abaixou a cabeça em sinal de respeito e tristeza, Maenádúe nos ajude, pelos Dragões que nos olham, ele já está
influenciando as plantas e os animais, seu poder cresce depressa e agora com
Jaoh’ndar ao seu lado as coisas só irão piorar, pensou o velho.
Edaliom desceu de seu Maerix, se aproximou e
tocou o ombro de Merlon.
- Venha General, os homens ainda precisam de
você. Andor ainda precisa de você. E principalmente, Nogard ainda precisa de
você.
O General se levantou, como se estivesse
ficando mais velho ainda, e muito cansado. De fato ele estava, quanto mais o
poder de Adarom crescia, mais fraco Merlon se tornava.
- Tem razão, perdoe-me Edaliom, algumas coisas
me entristecem em demasia... – disse o velho, então parou de repente. Teve um
mau pressentimento e imediatamente olhou para a sela de seu cavalo. Ali na
sela, de dentro da bainha, podia-se ouvir o doce canto da espada. Mitrhiilden
vibrava em sua bainha e a bainha vibrava aos olhos de Merlon.
- Edaliom pegue seu cajado, temos Bulks à nossa
volta.
Então do topo da colina, em meio à noite,
emergiram mais de trinta Bulks asquerosos, eram Bulks errantes, com armas e
armaduras pobres e quebradas, mas estavam em maior número e montados em Wargs.
Eles pararam no topo da colina, em fila. Algo que Merlon e Edaliom estranharam.
Merlon desembainhou sua Mitrhiilden e a segurou com ambas as mãos. Edaliom
firmou seus punhos no cabo do cajado e começou a pronunciar algumas palavras
para si mesmo.
- Dois vermes em uma toca rapazes. – disse o
maior deles.
Merlon reconheceu a frase, mas reconheceu ainda
mais aquele que a dizia. Não por sua fisionomia, pois todos os Bulks se
pareciam muito, mas pelo buraco que ele carregava em seu peito, um buraco tão
largo que se podia ver através dele. Ali em seu peito, onde um dia Mitrhiilden
havia perfurado.
- Khar ro. – disse o velho, lembrando da
Colina de Mélis.
- Velho. – disse Khar ro, entre dentes afiados
e saliva negra – Venho em nome de meu Mestre.
- Não tratamos com aquele a quem você serve,
criatura corrompida. – disse Edaliom.
Khar ro mostrou os dentes e seu Warg rosnou e
latiu, um latido horrível e amedrontador.
- Maégi? O cheiro de vocês é horrível.
- É porque eles não compartilham de suas
Sombras. Volte para suas tocas imundas no Falso Reino, aqui não é o seu lugar.
Khar ro estremeceu, deu um longo rugido, fechou
os olhos e desmaiou no lombo de seu Warg. Ficou imóvel durante algum tempo, até
mesmo os Bulks que o cercavam pareciam surpresos. De repente abriu os olhos, e
desta vez eles estavam vermelhos e penetrantes.
- Nossso lugar, ssseu lugar, onde realmente
devemos ficar? Velho, por qual motivo você tem maisss direito a esssa terra do
que nósss? Já não somosss tão diferentesss a temposss.
Merlon sabia que não era Khar ro quem falava, o
Mestre das Sombras falava através do Bulk.
- Mentiroso, suas mentiras não tem efeito sobre
mim. Houve um dia em que você tinha direito sobre essas terras, e muitas outras
mais, mas esse dia se perdeu no tempo. Não pense que irá triunfar. Não pense
que irá corromper todos que deseja. Aqui ainda existe um Banedúim para lhe enfrentar,
e eu não estou só.
- Eu vi o inicio dosss homensss, nada você pôde
fazer para evitar issso, verei também o ssseu fim e você não me impedirá.
- Haverá um dia em que os homens sucumbirão às
sombras. Mas não será hoje, nem nessa era. Você não tem poder aqui, Espírito
Negro, não sobre mim! - bradou Merlon e seu rosto e seus cabelos se iluminaram.
Como se estivesse se iluminando de dentro para fora. A noite tornou-se clara e
os Bulks ficaram mais assustados ainda.
Khar ro mostrou os dentes novamente, sua cabeça
se deitou para a direita, de uma forma assustadora, como se ele fosse quebrar o
próprio pescoço, seus olhos eram vermelhos como duas bolas de fogo. Ele olhou
no fundo dos olhos de Edaliom, e sussurrou em sua mente. Sussurros de mentiras
e de malícia, mas o Maégi era inteligente demais para que ele pudesse
manipulá-lo. Então ele desistiu no meio do caminho. Sua enorme mão, cheia de
garras negras, abria e fechava sobre o punho da espada, mas algo o continha, e
ele não atacou.
- Não vim aqui bussscar vocêsss, sssei da
exissstência do garoto, e eu o terei. – apontou um dedo para Merlon e o velho
perdeu o seu brilho, novamente era apenas um homem - Essstá fraco. Essstá
velho. - então virou as costas para Merlon e desapareceu por trás da colina,
com seus Bulks e Wargs.
Edaliom pensou em segui-los mas Merlon o
deteve.
- Esses Bulks errantes não são ameaça, são
apenas uma casca para seu mestre, e não passam de trinta, enquanto tivermos
Nogard ainda teremos chance. Vamos, Pontas de Lança nos aguarda.
E eles cavalgaram, em direção à Passagem, em
direção a Nogard.
Prepare-se
garoto, prepare-se para controlar um exército de homens, um exército onde cada
um deles tentará lhe derrubar do cavalo, pensou Merlon, rezando para
que Nogard se tornasse um Rei melhor que seu pai, Arelom.Encontrou algum erro, tem críticas ou sugestões?
Reaja e comente!!
Este obra foi licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivados 3.0 Brasil.
Nenhum comentário:
Postar um comentário